ninguém se suicida sozinho.
Antonin Artaud
À música, por agora, foi-lhe pedido que se calasse
– estava a incomodar. Amolece-nos, desprende
palavras inconscientes e vai-nos levando
à doença aforística, despejando
pequenas mágoas e desilusões, algo parecido
com o que segue de piegas
nos livros dos outros. Nada de
muito revoltado, só um estar por aí
ou viajar, parando para tomar cafés
com os sentimentos que aparecerem.
Já há muito que nem queremos nada
nem aguentamos um álbum mais duro,
uns berros, muito punk, do princípio ao fim.
Às vezes ainda nos despenteamos e vincamos
uma expressão sofrida, mas não dá,
não parece certo mesmo porque esta pinta de
insubmisso é um
look hoje
já muito ultrapassado. O que não nos fica
assim tão mal é a sombra estendida
aqui ao lado, como uma companhia imitando
em declínio cada movimento, ou um sorriso
quando o levamos longe demais. Estamos tão
estragados, mas a lógica é
não parecer muito distante. Manter
a perturbação entre limites, ter pelos dias
um nojo desmarcado, mas dobrar
várias vezes a voz para acercar-se de um canto,
gemidos em sangue num tom e
numa escala delicados. O corpo só fúria e estreme-
cimento, encostado quando pode e a deixar-se
embalar, puxando mais para si
um desmaio.
Falou-se em cervejas & cemitérios, assim do nada,
e depois eu a pensar e a dizer:
ora aí está
uma feroz repetição de que já devíamos ter
perdido o medo. Chegámos tarde, com alguma pena,
e só nos resta rodear a questão ou mandar a realidade
para o caralho e fazer de alice nalgum novo país
das maravilhas. Mas deixando isso para
mais logo, bebemos devagarinho as luas disponíveis
neste baixo e denso céu, vodca e sumo de qualquer fruta
enquanto aguardamos por uns ecos e uns
restos de ficção onde dê para raspar o que
temos de vivos.
Fechadas nas mãos mais noites com gritos,
as unhas na carne, a pressa em anotar
uma memória e deixá-la ir, esquecer-se de si.
Depois, ao virar das
horas, escuro, um pequeno quarto
a fugir do mundo com alguém
lá dentro, sofrendo o ruído, as cores e luzes
que entram por ali de rastos, passando
entre as persianas e esgueirando-se das paredes
para o tecto. A sensação líquida de ter-se
uma cabeça, violentamente,
persuasiva,
uma eficaz devoradora de sinais mínimos.
E a poesia também, assim como
um silêncio sujo de coisas menores,
aproximada de um rasto de
ranho, baba,
merda, alguma dor na cabeça,
um protesto ridículo ou até, se preferirem,
uma overdose de inúteis intenções.
Sim, talvez a coisa mais humana a fazer
seja seguir em frente, preparar um romance,
pensar em entrevistas e prémios, o costume.
Já diabólico seria
apontar os vossos nomes, procurar
na lista telefónica, ligar-vos esta noite ainda
e deixar muito claro que as coisas
vão ter que mudar.
Estamos tão próximos e mesmo assim
parece descabido, mas de outra maneira
só nos voltaremos a cruzar
perto do fim –
em nódoas, distorções e vultos,
instáveis e negras figuras ao fundo
como Van Gogh as pintava,
nas mais concretas proporções do susto.
Obras de uma arte terrível, cheia de rigor.
Um traço grosso e rude que não faz
grandes distinções, mas guarda a essência
destas presenças que, sem querer,
foram vistas a passar
e ficaram para a eternidade presas
no trabalho e na perspectiva de um suicida.
Diogo Vaz Pinto
0 COMENTÁRIO(S):
Post a Comment