Rambo, na sua ceira redonda, levantou a cabeça. Aquele uivo não lhe parecia de aflição, mas em questões desta natureza, era melhor indagar peritos em lascívia gritada. Brunilde sorria em sonhos, como se aquele som, que descia escadas e parava o vento, fosse música celeste, triunfante.
- Já fodem?, disse Rambo. Depois emendou a mão da língua. Os felídeos, especialmente aquela, são muito avessos a grosserias.
- Achas que estão a acasalar, Brunilde? A gata levantou-se, esticou-se, lambeu uma das patas que depois levou ao quase inexistente nariz e dignou-se ilustrá-lo com a sua milenar sabedoria das coisas da noite.
- Não ouviste o miado de cio satisfeito que ela largou, de estarrecer vales e ventos? Levam horas nos preliminares e depois são capazes de passar toda a vida, todas as estações, a comer-se vivos, noite e dia, até que a morte os separe. Acasalam para a vida, como patos elegantes e, se assim não for, matam-se vivos, de despeito e raiva. Não são gente compreensível, os humanos. Eu deixo-me comer à canzana, quando estou para aí virada. Mas há maneiras, tempos, períodos. Temos épocas. E se me levam as crias rafeiras, eu bufo por elas, mas dias depois nem me lembro. Eles não, estão sempre em cio, mais ou menos gravoso, porque metem a música e as estrelas de permeio.
Do andar de cima, ouviam-se agora os acordes jubilosos da Grosse Messe, Et incarnatus est. Rambo disse, Detesto música, embota o ouvido de um cão. És um rústico, disse Brunilde, um básico. Eles põem música para que os gritos que se seguem, gritos dela, berros dele, sejam ainda mais ferozes, para toda a vida. (...) E agora paramos a conversa, que toda a conversa de alma na boca é afrodisíaca, e ainda acabamos por parir um diabo da Tasmânia, que não é felídeo, nem canídeo, mas é o mais temível mamífero à face da criação. Desde que nasce morde na crica da mãe, morde nos irmãos, morde o óculo da câmara dos que o tentarem filmar. É incorruptível, preto e vermelho, mau como nenhuma cobra. E berra de raiva, noite e dia. Rambo era ingénuo.
- Tu achas que podíamos ter crias, Brunilde, tu e eu?
- Deus livre, respondeu Brunilde em crioulo. Uma aberração.
in Myra
Maria Velho da Costa
Assírio & Alvim, 2008
- Já fodem?, disse Rambo. Depois emendou a mão da língua. Os felídeos, especialmente aquela, são muito avessos a grosserias.
- Achas que estão a acasalar, Brunilde? A gata levantou-se, esticou-se, lambeu uma das patas que depois levou ao quase inexistente nariz e dignou-se ilustrá-lo com a sua milenar sabedoria das coisas da noite.
- Não ouviste o miado de cio satisfeito que ela largou, de estarrecer vales e ventos? Levam horas nos preliminares e depois são capazes de passar toda a vida, todas as estações, a comer-se vivos, noite e dia, até que a morte os separe. Acasalam para a vida, como patos elegantes e, se assim não for, matam-se vivos, de despeito e raiva. Não são gente compreensível, os humanos. Eu deixo-me comer à canzana, quando estou para aí virada. Mas há maneiras, tempos, períodos. Temos épocas. E se me levam as crias rafeiras, eu bufo por elas, mas dias depois nem me lembro. Eles não, estão sempre em cio, mais ou menos gravoso, porque metem a música e as estrelas de permeio.
Do andar de cima, ouviam-se agora os acordes jubilosos da Grosse Messe, Et incarnatus est. Rambo disse, Detesto música, embota o ouvido de um cão. És um rústico, disse Brunilde, um básico. Eles põem música para que os gritos que se seguem, gritos dela, berros dele, sejam ainda mais ferozes, para toda a vida. (...) E agora paramos a conversa, que toda a conversa de alma na boca é afrodisíaca, e ainda acabamos por parir um diabo da Tasmânia, que não é felídeo, nem canídeo, mas é o mais temível mamífero à face da criação. Desde que nasce morde na crica da mãe, morde nos irmãos, morde o óculo da câmara dos que o tentarem filmar. É incorruptível, preto e vermelho, mau como nenhuma cobra. E berra de raiva, noite e dia. Rambo era ingénuo.
- Tu achas que podíamos ter crias, Brunilde, tu e eu?
- Deus livre, respondeu Brunilde em crioulo. Uma aberração.
in Myra
Maria Velho da Costa
Assírio & Alvim, 2008
2 COMENTÁRIO(S):
deixou-me curioso.
Há um pormenor muito interessante no livro, lá pró fim. Mas se te contasse perdia a piada.
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