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Conto Público
#1
Dois lutadores de sumo. Treinaram vinte anos. O seu peso enorme, os rosto ameaçadoramente contidos. Imóveis, os dois corpos. Prontos para a acção.
Gonçalo M. Tavares
#2
Cada um visava o outro antecipando na sua mente cada movimento, Olhos nos olhos, o combate psicológico começara semanas antes, quando o de porte menos imperial desafiara o campeão dos campeões.
Kimatuto encarou o adversário como um tigre encara a sua presa. Na sua mente surgiam imagens de outros combates. Ainda não era hoje que o seu percurso de invencibilidade iria terminar. Era e continuaria a ser o rei do tapete.
António Ruivo, Leiria
#3
Continuaria a ser o rei do tapete. Repetia incessantemente para si mesmo. Continuaria a ser o rei do tapete. Repetia. Continuaria a ser o rei do tapete. E, contudo, nem um músculo se mexia. Continuaria a ser o rei do tapete mesmo apesar de o forte embate que sofreu do seu adversário quase o ter atirado para fora. Continuaria a ser o rei do tapete mas precisava mesmo de reagir porque o corpo insistia em não se mexer. Era a primeira vez que tal lhe acontecia. Era a primeira vez que lutava desde a morte daquele estranho na sua rua. Onde não reagira. Quando o devia ter feito.
João Tibério, Queluz
#4
A multidão vociferava ao longe o eco de uma multidão. Na sua cabeça a imagem do homem a esvair-se em sangue enquanto tentava dizer-lhe alguma coisa que não conseguia entender. Aproximara o ouvido aos seus lábios ensanguentados mas a única coisa que conseguira perceber era algo parecido com "procurem o dezanove". Não decifrara de imediato. Só no escuro da noite, dando voltas na cama na tentativa de dormir, conseguira juntar os sons silabados, omissos, até obter aquele estranho apelo. E igualmente o apelo dos seus olhos, numa névoa a esconder um último brilho antes de se apagar. Morrera nos seus braços e compreendera a suave doçura dum corpo acabado de morrer. Uma imperceptível desistência.
Paulo Gonçalves, Porto
#5
O momento do nascimento e o momento da morte. Dois momentos de ruptura que se ligam e nos ligam definitivamente. Ele morrera nos seus braços e por isso agora passaria a fazer parte de si. Como um filho. Tentara deixar de pensar nisso mas não conseguia. Sentia-se agora responsável por ele. Irremediavelmente. E não desistiria enquanto não descobrisse o que era "o dezanove". Mesmo que se lhe esgotassem os únicos momentos de descanso de que usufruía, que eram os que passava à noite, na verdade já de madrugada, junto da única pessoa que partilhava com ele o calor da sua existência.
Céu Guitart, Azeitão
#6
Esta fracção de pensamento quebrou-se quando subitamente sentiu as mãos do adversário no mawashi e os pés a flutuar. O sal que espalhou pelo dohyō, os cânticos do gyōji, o espaço circular violentamente contido que resumia a sua existência física e espiritual há 20 anos, repetiu nessa noite com a intensidade consciente de algo que se faz pela última e derradeira vez. Com as pregas profundas da sua obesidade comprimidas às do opositor, sentiu-se levar violentamente para fora do recinto sagrado. Caiu humilhado, e sem levantar a cabeça pensou: "Acabou. E agora?...", e um número voltou-lhe à memória... "dezanove"
Guilherme Vaz, Porto
#7
Na sua boca, sentia o amargo da derrota. Todos os feitos anteriores seriam rapidamente esquecidos. A fama, efémera, não passaria de uma ténue recordação de um passado glorioso. Um braço repousou sobre o seu ombro. Olhou para trás e viu uma figura familiar. Franzino, um homem de dentes desalinhados, amarelecidos pela sucessão de cigarros que aspirava durante o dia, sussurrou-lhe: "Estou contigo. Não cairás sozinho." O seu primeiro treinador, o homem que apesar da sua pobreza o retirou de um orfanato e acreditou nas suas potencialidades era, para ele, mais que um pai. Fora o principal responsável pela sua ascensão meteórica. No auge, foi renegado por ordens do agente que lhe prometeu fama e fortuna. Pashi saiu do anonimato da multidão para restaurar uma amizade perdida, um perdão concentrado num gesto. Kuamu, o promotor do combate, conversava com o árbritro. Secretamente, entregou-lhe um envelope, sem remetente ou destinatário, apenas dois algarismos: 1 e 9.
Manuel Lopes, Lisboa
#8
Shinozuka atravessava a cidade, atribulada e feérica como sempre. Não parara sequer para uma refeição rápida, tinha urgência em chegar a casa. Um nervoso miudinho percorria o seu corpo magro e endurecido por anos de disciplina e rigor. Tinha urgência em chegar a casa. No bolso do casaco aquele envelope subtilmente entregue por Kuamu fervia de inquietação e destilava mistério. Depois do combate, das cerimónias e dos discursos, ainda se sentiu tentado a abri-lo e a acabar com a curiosidade que o consumia. Conteve-se. Entrava em casa e, sem cumprimentar a mulher, fechou-se no seu pequeno e despojado escritório. Quando abriu o envelope, a surpresa não se dissipou: um bilhete de avião, para o dia seguinte. O destino ficava a 19.000 Km de distância.
Ricardo Moura Pais, Arraiolos
#9
Um amargo de boca. Como justificar a partida apressada, a bagagem arrumada à pressa, a ansiedade latente. Ao mesmo tempo uma vontade indócil de perceber. As quase 27 horas de distância, as escalas na Europa, as esperas e as dúvidas, tinham um destino. Como pronunciar esta palavra tão estranha, já incrustada no seu pensamento: Flo-ria-nó-polis.
Ricardo Moura Pais, Arraiolos
#10
"Tudo diferente", pensava Shinozuka. O tempo quente e húmido era o que restava do mundo de onde viera há 27 horas e onde havia estado todas as outras horas antes dessas. Conseguira justificar a sua ausência com um convite de última hora para arbitrar um torneio internacional. E ali estava, num país que não conhecia para entregar um envelope a um homem que nunca vira: Aito Sato. Dele apenas sabia que foi um dos kyodai de uma importante família Yakuza, entretanto desaparecido. Recebera a carta de Kuamu que apenas lhe disse: "Depois disto a tua dívida está paga". Sato, Kuamu e ele. Todos intermediários. Operários de uma linha de produção, responsáveis por apertar um parafuso de uma peça que nunca viriam a conhecer. A inquietação voltou. Num impulso abriu o envelope. Nele encontrou duas coisas: uma carta onde se podia ler "Obrigado" e uma chave com uma placa e um número, 19.
Nuno Grosso, Lisboa
#11
Entretanto resolveu parar para pensar. Esta história parecia-lhe muito mal contada e demasiado rocambolesca para quem passa a vida a correr atrás do normal. O número 19 sempre tinha sido o seu favorito, mas jamais imaginaria ter de percorrer meio mundo à procura de algo que cada vez lhe parecia mais irreal... Parecia-lhe que estava na história errada. Se calhar era tudo um lapso e a ele apenas competia provar que estava a meio de um engano. Por que razão iria atrás de um número apenas porque alguém recusa aceitar que, por vezes, o inevitável é mesmo inevitável? Ele sempre fora uma pessoa demasiado pragmática para perder tempo com ilusões...
Ally Fontana, Lisboa
#12
Shinozuka aproximou-se do balcão da recepção. "Ligue-me ao quarto 19". Um momento de espera, percorrendo todas as vozes da sua vida, todas aquelas que poderiam estar do outro lado da linha. "Sim?" Um momento de espera. "Sou eu..." Um momento de espera. "Vou descer. Encontro-te no bar do hotel". Desligou. Pediu uma bebida no bar e sentou-se. Olhou à sua volta, tudo lhe parecia estranho. Nunca poderia ter imaginado que acabaria sentado no bar de um hotel à espera de uma pessoa. O número dezanove desenhou-se na sua mente e aí permaneceu até desvanecer com um toque no ombro, a sombra de alguém atrás de si. Virou-se.
António Barbosa, Covilhã
#13
O toque no ombro foi leve, sem tensões, amigável. Uma mulher? Linda, traços nitidamente japoneses. Cabelos negros e compridos, maravilhosamente lisos e brilhantes.
– Ohayou Gozaimasu, cantou a bela.
Shinozuka não reagiu: a boca aberta, secou-lhe. Ela sentou-se à sua frente e fez de seguida um sinal para o rapaz atrás do balcão do bar. Pediu num português perfeito: um sumo de maracujá. Shinozuka continuava mudo.
– Outro para o meu amigo.
Em cima da mesa, a bela pousou a sua bolsa pequena e a chave com um pesado porta-chaves em madeira exibindo o número 19.
Maria do Céu Mota, Santa Maria da Feria
#14
Enquanto esperava pela bebida, ela permaneceu silenciosa. Avaliou-o com o olhar, mas a sua expressão não traiu minimamente os seus pensamentos. Shinozuka começou a sentir-se desconfortável, sem saber se devia fingir-se distraído ou se devia olhá-la também nos olhos... nunca tivera muito jeito para esses jogos. Finalmente, para seu alívio, o empregado trouxe a bebida. Ela pegou no copo... voltou a pousá-lo com impaciência e, chegando-se à frente, disse-lhe baixinho, com voz ríspida:
– 35? Eu sou a 19, entrega-me a encomenda.
Ana Borges, Torres Vedras
#15
Shinozuka endireitou-se na cadeira. A roupa pesava-lhe e uma sensação de mal-estar tomava conta de si. Considerara adequado vestir o seu melhor fato para este encontro - afinal, não sabia o que ira encontrar.
No entanto, o calor daquela cidade atrasava-lhe a respiração, tornava-a mais pesada, e sentia-se cada vez mais fraco. Olhou o tecto, observou atentamente a ventoinha que, por cima de si, rodava as suas pás. No entanto, era como se todo o ar se tivesse ido.
Ohayou observava-o expectante, franzindo ligeiramente o sobrolho. Reiterou:
- Entrega-me a encomenda.
Shinozuka levou a mãe ao bolso interior do casaco, observou a bela mulher sentada à sua frente e estendeu-lhe o envelope.
Joana Loureiro, Lisboa
#16
Aguardo esta carta há tanto tempo! Dela depende o meu futuro e o de toda a minha família.
Pegou lentamente no copo e sorveu o sumo até à última gota. Fitou Shinozuka por alguns segundos e começou a ler a carta. Shinozuka reclinou-se na cadeira e, por delicadeza, fechou os olhos.
Um estampido breve e seco ecoou. Ohayou, deitada sobre o lado direito, jazia no chão do hotel. Um fio de sangue lento, espesso, corria pelo mármore branco da recepção.
José António Quelhas Lima, São Mamede de Infesta
#17
O metal dos olhos de Shinozuka diluiu-se na enchente descontrolada que lhe afogou as janelas da alma. O cérebro ordenava, mas a voz não queria embalar aquele sofrimento que corria, e de repente, invísivel, tomava já conta de tudo. O peito de Ohayou, quedo, prenunciava que nunca mais um sorriso de anjo encantaria ou faria qualquer outra coisa na forma como os minutos corriam naquele local.
Um gato esquelético cruzou a esquina daquele corredor, entrou na sala, e deitou-se junto ao corpo recém-partido. Parecia suspirar pela concretização de uma premonição. Ao lado, o corpo sorria, muito brevemente, mas só isso. Estava morto.
Shinozuka continuava mudo. Ao longe ouvia-se uma rouca sirene da polícia, que gritava já no preciso momento em que começou a chover. Nada havia para dizer a ninguém. Um homem louco, um animal indiferente, e coisas por explicar, dariam trabalho a quem quisesse perceber a sequência dos acontecimentos.
Pedro Candeias, Lisboa
#18
O sopro da sirene está mais próximo. De súbito, Shinozuka, que ficara em 10 segundos sem mover um músculo, sentiu-se expandir numa apanha de ar aparatosa.
O choque parecia multiplicar-se pelo número de gotas da tempestade que se abatia lá fora. Ainda assim Shinozuka está consciente e disperso. O som das sirenes cessou. Em seu lugar surge um flash intermitente, silencioso: azul e vermelho. A sala de luz morna é agora vermelha.
Shinozuka é esbofeteado um par de vezes pelas ofuscantes luzes, fita o balcão vermelho, a chave 19 e a bolsa de Ohayou, azul pega na carteira, vermelho sai pelas traseiras. Pálido e perdido desata a bolsa, lá dentro um leitor de música e um bilhete para 35.000 km de distância. Junto à janela.
Filipe Corrugado, Porto
#19
"35", repetia incessantemente enquanto o seu passo apressado e o seu volumoso corpo se evidenciavam cada vez mais no olhar dos que o viam passar.
No seu caminhar determinado não se desenhava a certeza de um destino. Fugia e como um animal ferido procurava apenas uma solidão onde pudesse reconstruir uma ordem, um sentido do que lhe parecia ser cada vez mais enigmático.
"35", fora assim que Ohayou o interpelera. Lembrava-se agora do leitor de música da bela Ohayou e levou a mão ao bolso do seu casaco para se certificar de que o levava com ele.
Num acto súbito entrou numa velha pensão e pronunciou uma só palavra quando com largo sorriso um velho homem em camisa de alças lhe dava as boas-vindas e se dispunha à conversação. "Room", disse Shinozuka, olhando para a parede desmaiada onde estavam as chaves dos quartos.
Pedro Marques, Paris
#20
Abandonou o corpo à cama, ressumando exaustão e desespero corrosivo. Percorreu o tecto com o olhar vago, perdido na memória dos últimos acontecimentos, acabando por cerrar os olhos, acossados pela ausência de horas de sono, esgotados de nada vislumbrar. O cansaço era, sem dúvida, seu adversário e não favorecera o desempenho da memória. Ainda assim, tentou, em hercúleo empenho, ligar pormenores que o conduzissem à decifração do complexo enigma. Ansiava representar, novamente, o papel de árbitro activo e competente, como nunca o deixara de ser em todos os dohyō, de outros combates. Mas esta era uma luta pouco objectiva, revestida de inúmeras sinuosidades, progressivamente obscura e intrincada.
"Para além do inverosímil existe, certamente, uma explicação", pensou em jeito de próprio encorajamento. É interrompido nos seus pensamentos pelo som grave do telefone. Do outro lado, uma voz masculina faz cair, pausadamente, uma nova imposição.
Maria do Rosário Colaço, Lisboa
#21
Demasiado cansado para reagir, Shinozuka escuta a voz séria e metálica que se faz ouvir do outro lado do telefone. À medida que as palavras se soltam, em tom incisivo e peremptório, sente-se invadido por um temor e uma sensação de mal-estar percorre todo o seu corpo e mente.
O som estridente que, segundos antes, o despertara dos pensamentos mais profundos e o enervara sobejamente, cedeu lugar àquela voz, sem rosto, anónima e que lhe provocava um calafrio inexplicável.
Do outro lado, a voz masculina ordena-lhe, friamente, a devolução imediata do leitor de música da bela Ohayou, que trouxera consigo na fuga desesperada que encetara minutos antes.
Como podia a voz saber que guardara o objecto pessoal de Ohayou?, questionava-se entre um misto de surpresa e receio. Quem era aquela gente que parecia saber todos os seus movimentos? O que fazer? Como conseguir escapar aos olhos invisíveis...
Luz Câmara, Coimbra
#22
Como conseguir escapar desta teia? Como se deixou transformar nesta marioneta completamente manipulada?
Sai à rua. Sente-se espiado em todos os seus movimentos. Olha freneticamente para trás, para os lados, para trás, olha nos olhos de quem passa como se todos estivessem envolvidos, procurando também um sinal... sem saber de quê!
Desesperado e exausto deixa-se cair ao virar de uma esquina, como se ali ficasse invisível do resto do mundo. Lembra-se da sua bela mulher, precisava do seu olhar que o acalmava e lhe dava ao mesmo tempo toda a tranquilidade e força do mundo, do seu abraço apertado mas terno, de sentir o seu cheiro doce e o calor do seu corpo, do seu beijo... Onde estaria ela, que estaria a fazer?
Brutalmente arrancado aos seus pensamentos e ao chão, foi empurrado para dentro de uma carrinha fechada que se pôs de imediato em movimento: "ONDE ESTÁ O LEITOR DA OHAYOU?!"
Raul Galveia, Coruche
#23
O seu coração palpitava e agitava-se no seu peito num batimento descompassado, a sua cabeça latejava e o seu corpo debatia-se por uma posição reconfortante. Mas tudo se assemelhava a estar bem longe de ser reconfortante: a carrinha tinha um cheiro insuportável a enxofre, as cordas que lhe amarravam os tornozelos estavam demasiado apertadas e estar vendado impossibilitava-lhe avaliar fosse o que fosse. Já passara uma hora desde o seu infortúnio. As perguntas ressaltavam-lhe na cabeça imparavelmente; estava num estado irremediável de incompreensão - parecia-lhe um grande puzzle no qual não conseguia juntar as peças. A sua linha de pensamento foi interrompida por um brusco abanão da carrinha. Teriam parado?
Joana Vaz, Sintra
#24
Ouvido atento, músculos retesados, expectante. Sim, tinham parado. A porta da carrinha é aberta e o cheiro a enxofre mistura-se com o odor adocidado do campo, um cheiro a terra húmida, a terra lavada pela chuva que tinha caído. Onde estaria? Sente que lhe retiram a venda. Abre os olhos numa mistura de luz e sombra. Olha à volta o descampado. Não havia ninguém, tudo era silêncio. As cordas, à volta dos tornozelos, pareciam cada vez mais e mais apertadas. E os pés deixaram de existir. O seu corpo é uma amálgama de dor. A cabeça rodopia numa tontura, numa interrogação. O que tinha acontecido? Quem tinha matado Ohayou? Porquê? Quem era ela, afinal? Um murro enorme atinge-o em pleno rosto. E outro, e outro ainda. E o sangue, devagar, escorre por entre a pele lívida de espanto. Uma voz rouca, soturna, pergunta:
- Quem és? Diz, quem és tu? Por que mataste Ohayou?
Respira...
Maria Teresa de Jesus dos Santos, Massamá
#25
De súbito, o homem parou; levou a mão direita ao bolso - uma carta. Entregou-a a Shinozuka. Uma carta fechada. Shinozuka tinha medo, mas mesmo assim estava curioso. Uma luta rápida: curiosidade/medo. Ganhou a curiosidade. Mas isto foi na sua cabeça, cá fora ele não se mexeu. Esperava uma indicação concreta para abrir a carta - ou um soco. Não veio soco.
Gonçalo M. Tavares
#26
No branco imaculado da carta, uma pinga do seu sangue. Do sangue que derramara nem ele sabia porquê. O lugar e a altura não eram as propícias a um raciocínio desanuviado. E os tambores que escutava na sua cabeça, que a enchiam num ritmo sonoro ensurdecedor, também não ajudavam. Na sua mão uma carta. Que carta era aquela? Que poderia ela desvendar? Repousaria no seu conteúdo a causa de tamanha violência? Os seus dedos dormentes tentaram abri-la, mas nem isso. Sentia-se desfalecer. Não veio "selo". Veio só a carta. Esta carta. Seria ela um soco no estômago?
Miguel Santos Teixeira, Oeiras
#27
O despertar fora lento e doloroso. Deu instruções ao seu corpo dormente para se erguer, mas este recusava-se a obedecer. Olhou em volta. Estava deitado no chão do que parecia ser uma casa abandonada. As janelas estavam parcialmente destruídas e os tentáculos da natureza ameaçavam as indefesas paredes. As falhas no telhado pareciam feridas abertas pelos raios de sol que teimavam em iluminar um pedaço de papel perto do seu corpo. Lentamente as recordações regressavam à superfície. A carta. A revelação estava ao alcance da sua mão.
Vitor Costa, Famalicão
#28
Estranhamente a casa abandonada tornou-se acolhedora, um refúgio. Arrastou-se para um canto lentamente, dolorosamente. Encostado à parede ergueu os joelhos e rodeou-os com os braços, a carta ainda na mão, já ligeiramente amarrotada. Abriu-a. Lá dentro uma palavra: Felicidades. Fixou os caracteres elegantes - femininos? - uma e outra e outra vez. A barriga enorme começou a tremer, depois o resto do corpo. A boca de Shinokuza abriu-se e a sua garganta lançou um grito transformado numa gargalhada enquanto o papel branco caía amarfanhado no chão.
Estou livre - pensou.
Isabel Brinca, Faro
#29
Não conseguiu controlar as lágrimas. Pegou no papel e releu a mensagem de novo. Suspirou num misto de resignação e de alívio. A palavra ainda continuava lá, mas agora já não parecia tão reconfortante. A sensação de liberdade depressa cedeu lugar a uma vaga de confusão. Continuava a chorar e as suas mãos recusavam-se a largar o papel amarrotado e salpicado de água. Pensou na ironia do destino. Estava a afogar a ordem de libertação nas suas próprias lágrimas. De repente ouviu o som de passos. Levantou-se num ímpeto e afastou-se para um canto. A cadência era cada vez mais curta e audível. Viu uma sombra recortada pelo sol junto à porta. Engoliu em seco e aguardou.
Vitor Costa, Famalicão
#30
Ouviu a porta abrir-se. O som das dobradiças enferrujadas e o ranger do movimento ecoaram pelo espaço. A luz do exterior banhou a entrada recortando figuras por entre os móveis semi-desfeitos, filtrada pelo pó de anos de abandono. Contra luz viu um homem alto, magro. O estranho ficou à porta piscando os olhos para se habituar à escuridão. Ou seria surpresa por o encontrar ali? Dificilmente se poderia esperar encontrar um lutador de sumo numa casa perdida no sul do Brasil! Perguntou-lhe quem era e o que fazia ali num japonês perfeito, mas com algum sotaque. Devolveu-lhe a pergunta e aguardou. O estranho sorriu, entrou na sala, limpou o tampo de uma cadeira e sentou-se. Em seguida retirou do bolso interior do seu casaco uma garrafinha de metal e bebeu um golo. Depois esticou o braço e ofereceu-lha. Inicialmente, olhou-a, desconfiado, mas depois aceitou a oferta do estranho. Foi então...
Patrícia Loureiro, Lisboa
#31
…que o reconheceu. O impacto da revelação fora brutal e demorou alguns segundos a recompor-se. Esfregou os olhos, incrédulo e desconfiado. Não pode ser, pensou. Aproximou-se e observou-o. Aquele rosto aquilino, os olhos em forma de amêndoa, o nariz pontiagudo e o mesmo olhar vigilante e indecifrável de sempre. Um nome formou-se na sua mente. Sakamura. Outrora fora o seu melhor amigo até ao dia em que conheceram a mulher que destruiria o juramento feito desde a infância. A amizade cedera lugar à mentira, ao ciúme e à traição. Começava agora a encaixar as peças para completar o puzzle do seu rapto. Tudo fazia sentido. A carta, a estranha mensagem, a morte de Ohayou. Estremeceu perante este último pensamento. O seu olhar fulminante apontou para o culpado. Estava frente a frente com o assassino de Ohayou.
Vitor Costa, Famalicão
#32
Sakamura disse: em tempos traíste. Nunca soube porquê. Mas não esqueci. Vais ser incriminado por um assassinato que não cometeste. E ficarás sem entender muito do que te aconteceu. Esta será a minha segunda vingança. A melhor delas, até. Depois, voltaremos a ser amigos, sem dúvida.
Até breve.
Gonçalo M. Tavares