Primeira Tentativa
Faltam 5 minutos para chegar o 16 e estou capaz de jurar - a pés juntos, senhores - que tenho a meu lado o meu personagem. Tem um enorme rasgão nas calças e uma investida compulsiva por tabaco, factores por si só suficientes para ter a minha mãe a querer-me afastada dele – é bom deixá-la continuar a pensar que pode gerir estas coisas. Tem vinte e tal anos, óculos de massa, o cabelo desgrenhado e aquele ar dos estudantes de Direito que, entediados pela inutilidade da maior parte das leis aglomeradas nos livros, acabam por descobrir na literatura os maiores encantos (às vezes, também acontece com os de Medicina que, fartos de pernas mortas, talham com letras formas diversas de falar das que vivem) – consigo lembrar-me de meia dúzia de casos. Deve ser por ter um dos pés não assente no chão que lhe acho piada - são sempre os pombos coxos que nos chamam a atenção. É evidente que tem frio. Eu também tenho. Assim como, com a sorte que não tenho, há-de estar a aguardar o 758 ou o 746 ou o 2, 3, 4, 5. Nunca o 16. É pela mesma ordem de ideias – a da minha falta de sorte ou propensão ao azar, entendam como quiserem – que, entretanto já no autocarro 16, consigo um lugar bem no meio da multidão, que é - precisamente - onde ele não está. Ele está lá, nos lugares traseiros, aninhado no i-pod e, agora que consegui chegar cá atrás, ele está ali à frente, à espera que as portas abram e possa então sair. Saiu.
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São sete e trinta e duas da tarde e JURO que começo a ter sono; JURO que não há aqui ninguém que me interesse e que dou por findado o meu trabalho.
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São sete e trinta e seis da tarde que é noite, e JURO que começo a sentir outra vez aquela minha descrença na espécie. Em geral. Segunda Tentativa São dez e cinco da noite e quero declarar que esta, como qualquer outra, é uma má hora para estar num dos muitos centros comerciais, que, como é sabido, mas não consensualmente aceite, são sítios quentinhos, enormes e horríveis.
PISO -1.
Neste centro comercial há uma clara-bóia sobre a qual transborda uma espécie de repuxo e com isto se justifica o nome do centro “Fonte Nova” ou, assim pelo nome do centro, porventura anterior à ideia do repuxo, se possa entender este fenómeno-provocado de um tecto que escorre. À parte as gotas de água, ninguém há-de prestar atenção a este senhor. Vejo-o sempre desde que cá cheguei: Sentado, abstraído e curvo. Observo-o. Porque é que não tem um cão? Podia ter um cão. O que melhor o caracteriza é aquele gesto anómalo, evidentemente delator de uma qualquer perturbação mental, que faz com que, debruçado sobre um chão limpo, polido e espelhado de centro comercial, vá movimentando as mãos alternadamente e em sentido ascendente. Para que percebam, é como se houvesse uma bica de água e ele a tentasse aparar com a mão esquerda, depois com a mão direita, com a esquerda, com a direita, e assim sucessivamente, de baixo para cima. Senta-se normalmente perto de uma loja que tem na vitrine um anúncio insólito. Mais ou menos isto:
“Admite-se empregado ou empregada, com mais de 45 anos de idade, sem experiência,
com disponibilidade”
e impressiona-me pois que não o queiram contratar se me parece não haver um único requisito que não cumpra. Parece-me que passa aqui o dia todo. Não dorme, não come, não bebe, não veste as camisolas escuras que usa, nem as despe; não penteia o palmo e meio de cabelo grisalho, não lava a cara morena. Apenas carece de fontes imaginárias nas quais vai lavando as mãos das cercanias, (lavo de vós as minhas mãos) ao passo que nobremente ilustra o nome deste seu habitáculo. Será que gosta da música que aqui passa? Eu não. Às vezes fala sozinho, sem som. Terá 60 anos? Será que foi da guerra? Acerca dele, apesar de até gostar que fosse diferente, nada posso afirmar, mas antes perguntar. Será que ouve? Será que tem voz? Posso sentar-me? Passa uma rapariga que o olha com desdém. Sai um quarentão da casa-de-banho com aquele ar de benfiquista, e felizes que eles andam, nos dias que correm. Passa um securita que já nem olha – este senhor é mobília da casa. São 22:35 e os movimentos não cessam. São 22:36 e começo a divagar acerca daquilo que, daqui a 24 minutos, quando o centro encerrar, acontecerá a este senhor. Levanta-se. Olha com o mesmo desdém da rapariga que passou há bocado o chão que ela pisou. E agora, evaporou-se. Dado que desapareceu, tive de olhar para as montras: Ninguém há-de desconfiar que uma gaja, que ainda por cima tem um chupa-chupa na boca, não ache piada a um par de botas cor-de-rosa. com disponibilidade”
Novembro de 2009
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