Madame Bovary # 1



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 ( Passagem )

Emma permaneceu por momentos com aquele longo papel nas mãos. As faltas de ortografia sucediam-se uma após outra e Emma perseguiu o carinhoso e doce pensamento da carta, como se persegue uma galinha por entre os matagais. A tinta tinha sido seca com a cinza da chaminé, pois caiu sobre o vestido um pouco de pó cinzento. Quase acreditava ver o seu pai, debruçado sobre a lareira para pegar nas tenazes. Há quanto tempo não se sentava na arca, ao seu lado, ante o fogo, enquanto ardia um troço de lenha na chama dos juncos marinhos que crepitavam!
Recordou as soalheiras tardes de verão; os potros, que ao passar junto dela relinchavam, galopando. Sob a sua janela havia uma colmeia e ás vezes as abelhas, girando na luz, chocavam nos vidros e ricocheteavam como balas de ouro. Que felicidade a de então! Que liberdade! Quantas esperanças! Quantas ilusões! Agora tudo tinha desaparecido. Tudo se tinha consumido nas múltiplas aventuras do seu espírtio, nas sucessivas etapas da sua vida, na virgindade, no amor... Tudo se foi perdendo, constantemente, ao largo da vida, como o viajante que vai deixando parte da sua riqueza pelas hospedarias do caminho.
Mas, quem a fazia tão infeliz? Onde se escondia a extraordinária catástrofe que a transtornava? E levantou a cabeça, olhando ao seu redor como que à procura da causa para o seu sofrimento. Um raio de sol de Abril cintilava nas porcelanas do armário da sala. A lenha ardia na lareira e abaixo das suas chinelas sentia a brandura da carpete. O dia estava claro, a atmosfera tíbia e ouvia, ao longe, a filha a rir estridentemente (...).
in Madame Bovary,
de Gustave Flaubert



Still de Madame Bovary (1991), de C. Chabrol

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