"Já não morremos hoje, nem casamos amanhã"
Dito Popular
I. / II.
Usámos a dois: estações do ano, livros e uma música.
As chaves, as taças de chá, o cesto do pão, lençóis de linho e uma cama.
Um enxoval de palavras, de gestos, trazidos, utilizados, gastos.
Cumprimos o regulamento de um prédio. Dissémos. Fizémos. E estendemos sempre a mão.
Apaixonei-me por Invernos, por um septeto vienense e por Verões.
Por mapas, por um ninho de montanha, uma praia e uma cama.
Ritualizei datas, declarei promessas irrevogáveis,
idolatrei o indefinido e senti devoção perante um nada,
(- o jornal dobrado, a cinza fria, o papel com um apontamento)
sem temores religiosos, pois a igreja era esta cama.
De olhar o mar nasceu a minha pintura inesgotável.
Da varanda podia saudar os povos, os meus vizinhos.
Ao fogo da lareira, em segurança, o meu cabelo tinha a sua cor mais intensa.
A campainha da porta era o alarme da minha alegria.
Não te perdi a ti,
perdi o mundo.
Ingeborg Bachmann
O Tempo Aprazado
II. / I.
Saímos do amor
como dum desastre aéreo
Tínhamos perdido a roupa
os documentos
a mim faltava-me um dente
e a ti a noção do tempo
Era um ano longo como um século
ou um século curto como um dia?
Por cima dos móveis
pela casa
só despojos quebrados:
copos retratos livros desfeitos
Éramos sobreviventes
duma derrocada
dum vulcão
de correntes enfurecidas
e despedimo-nos com a vaga sensação
de termos sobrevivido
mas não sabíamos para quê.
Cristina Peri Rossi