Digo Que Não Sou Um Homem Puro.



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Digo que não sou um homem puro
Não vou dizer-te que sou um homem puro.
Entre outras coisas
resta saber se o puro de facto existe.
Ou se é, digamos, necessário.
Ou possível.
Ou se tem bom gosto .
Acaso já provaste a água quimicamente pura,
a água de laboratório,
sem um grão de terra ou de esterco,
sem o pequeno excremento de um pássaro,
a água feita apenas de oxigênio e hidrogênio?
Puá! que porcaria.
Não te digo, pois, que sou um homem puro,
não te digo isso, mas bem o contrário.
Que amo (as mulheres, naturalmente,
pois meu amor pode dizer seu nome),
e gosto de comer carne de porco com batatas,
e grão-de-bico e chouriço, e
ovos, frango, carneiro, peru,
peixe e mariscos,
e bebo rum e cerveja e aguardente e vinho,
e fornico (inclusive com o estômago cheio).
Sou impuro, o que queres que te diga?
Completamente impuro.
No entanto,
creio que há muitas coisas puras no mundo
que não são mais que pura merda.
Por exemplo, a pureza da virgindade nonagenária.
A pureza dos noivos que se masturbam
em vez de se deitarem juntos numa pousada.
A pureza dos internatos, onde
abre suas flores de sémen provisional
a fauna pederasta.
A pureza dos clérigos.
A pureza dos académicos.
A pureza dos gramáticos.
A pureza dos que asseguram
que devemos ser puros, puros, puros.
A pureza dos que nunca tiveram blenorragia.
A pureza da mulher que nunca lambeu uma glande.
A pureza do homem que nunca sugou um clitóris.
A pureza daquela que nunca pariu.
A pureza daquele que nunca procriou.
A pureza daquele que se dá golpes no peito, e
diz santo, santo, santo,
quando é um diabo, diabo, diabo.
Enfim, a pureza
de quem não chegou a ser suficientemente impuro
para saber o que é a pureza.

Nicolás Guillén 
Antologia Poética 
Campo das Letras, 1995

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