por Ana Cássia Rebelo aka Ana de Amsterdam
A adolescência trouxe-me uma espécie de fervura ao sangue. Foi por volta dos vinte anos que desejei morrer pela primeira vez. Contava lamelas de comprimidos. Pressionava pontas de faca contra os pulsos. Ficava à beira do passeio a sentir o corpo estremecer à passagem próxima dos autocarros. Subia ao telhado do prédio com o intuito de me atirar lá de cima. Apesar da angústia, sinto um conforto esquisito quando recordo esses instantes desesperados, sobretudo quando me chega a lembrança da beleza extrema do telhado do prédio dos meus pais. Abria a pequena porta de metal e o ar era subitamente puro, livre de fuligem cancerígena. Olhava em redor, só via céu, o alinhamento simétrico das torres de doze andares, a pista do aeroporto ao longe. Parecia-me que ali, naquela dimensão, mundo inóspito, silencioso, solidão muito branca, o ar voltava a chegar-me aos pulmões. A pouco e pouco passava-me a vontade de morrer. Deitava-me no declive de telhas, esverdeado de líquenes, sentia o vento no rosto, esperava que o tempo passasse.
Pensar na morte tornou-se num vício. Aliviava-me. Fazia listas de métodos, tentava perceber qual o mais eficaz e menos doloroso. Todos apresentavam desvantagens e dificuldades. Na queda havia o instante em que o corpo bate no passeio e o crânio se racha. Cortar os pulsos trazia o incómodo do sangue empapando as carpetes da sala e a certeza de morrer lentamente. O enforcamento parecia-me uma morte feia, abrupta, os enforcados morriam aos soluços, o corpo sacudido pelo estertor final, a língua de fora. Outra coisa me fazia rejeitar o enforcamento. Sabia que os enforcados perdiam o controlo do esfíncter e a ideia dos meus pais darem comigo morta, cheia de urina e fezes, envergonhava-me. Tomar comprimidos era, de longe, o melhor método, mas havia a possibilidade da falhar a dose, se não tomasse a quantidade certa corria o risco dos outros encontrarem artificialidade no meu gesto. A reflexão enfraquecia pois a minha determinação. Queria morrer, mas através de um gesto que fosse simples como beber um copo de água ou desligar um interruptor.
Durante a noite, deitada na cama, muitas vezes, pensei que a solução mais fácil era entregar o assunto a um especialista. Podia simplesmente contratar alguém para me matar. Havia maridos que contratavam assassinos para matar as suas mulheres e mulheres que contratavam assassinos para matar os seus maridos. Por que não havia eu de contratar quem me matasse? Estes pensamentos extraordinários chegavam geralmente depois de me masturbar a pensar em prostitutas com grandes mamas e vestidos de lantejoulas. A ideia do pistoleiro parecia-me boa, mas não tardei a perceber que a morte, encomendada e eficaz, era um pouco como as prostitutas de vestidos de lantejoulas: um luxo que não estava ao meu alcance. Não tinha dinheiro para contratar um assassino, e mesmo que tivesse, não conhecia nenhum. Vivia num bairro de classe média, pacato, perto de Sacavém. Havia apenas alguns heroinómanos que roubavam enciclopédias, loiças finas e garrafas das garrafeiras dos pais para assegurar a dose diária. Tudo era cinzento e deprimente. Encontrar ali um assassino não era fácil.
Mas, por mais que tentasse livrar-me dos pensamentos suicidas, a vontade de morrer não me largava. Tornei-me obsessiva, a ideia era-me tão agradável como sentir a luz da tarde coada pelas cortinas brancas no quarto da tia Dé ou observar a minha mãe, nas manhãs de sábado, limpando o pó do grande móvel escuro da sala. Sentia-me naturalmente desadequada, anormal, adensava-se a minha inquietação: não só me masturbava a pensar em mulheres prostibulares como sentia esse desejo latente de morte. Muitos anos passados, habituada à natureza cíclica desse desejo, a minha iniciação no desespero parece-me caricata. Às vezes, entre soluços e lágrimas, dá-me até vontade de rir. Tudo bastante dramático, sofrido, estupidamente inconsequente. Sei agora que, assim como somos pornográficos às escondidas, somos suicidas às escondidas. A vida tem um punhado de coisas boas, mas não é como se pinta. Quase sempre é aborrecida, uma desilusão, está cheia de sofrimento, tristeza, injustiça, ruas sujas e íngremes, crianças com fome, gente silenciosa e desesperada. Como não achar a vida insuportável? Não tenho dúvidas de que a morte é desejada por muita gente e constantemente. Se houvesse um método infalível, fácil, instantâneo, limpo, haveria no mundo uma mortandade grande, talvez fosse até preciso mandar construir crematórios, valas comuns, investir na formação de coveiros, técnicos de equipamento de cremação, cangalheiros. Mas há vinte anos, precisamente há vinte anos, não tinha o discernimento de hoje, vivia na certeza da minha singularidade. Dava voltas na cama, inquieta. Quanto mais pensava no assunto mais me convencia de que a morte era o melhor que a vida tinha para me oferecer.
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