foto por: Rui Palha
OUTRO
Ao entardecer as ruas deixam-se atingir
pelo que quiseres. Compassivas, legendadas
para um ameno português, enredam-se
e vão falindo pelas linhas tortas
de uma subserviência sentimental.
Numa hora em que ninguém te olha
ou sequer procura, desfazes-te
entre curvas e erros, passos teus
e de um estranho que se habituou
a seguir-te sem fazer comentários.
Temos gostos diferentes e num café
cada um pede o que lhe apetece.
Eu penso na vida, ele na morte, e ficamos
laborando à volta de insignificâncias,
vagas ficções que acariciamos sabendo
que houve gestos mais memoráveis
que os nossos, arranhões mais fundos
na pele do tempo, e que de qualquer modo
tudo sarou. O mal a que os dias nos levam
também já pouco abala este peito.
Vinte e três anos depois chegamos a isto
- a floração podre do desencanto.
Vejo agora esse enorme cadafalso
e como, um por um, os paraísos escoam
pelo ralo do nosso desinteresse.
Como um espasmo, um pensamento
descobre-se consanguíneo com a cinza
cuspida por este cigarro e o mais difícil
de assumir é que nem a queda do anjo
é livre, nem de nada lhe vale gritar.
DIOGO VAZ PINTO
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