'Ontem Não Te Vi Em Babilónia' REVISITED



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Ando a reler o ‘Ontem não te vi em Babilónia’, de Lobo Antunes, que me ofereceram no ano que passou, com a dedicatória rabiscada ao abrir:
‘Para a Besta, 2007. O Hi-Fi estava caro, portanto gramas com isto e já vais com sorte’
É fabuloso – o livro, o autor, a humanidade tão nua, tão visceral, tão patente – e ficaria sempre bem aconselhar lê-lo.
Mas não o farei.
Primeiro porque tentei calcular a probabilidade de pessoas que atenderiam ao pedido; segundo porque a escassa percentagem de indivíduos que o fizesse, possivelmente havia de entrar no estado de frustração em que este homem me põe sempre. E eu não quero isso. Afinal, quanto tento cozinhar ou impedir-vos de ler Lobo Antunes só quero tornar o mundo num sítio melhor…
Às vezes tenho pena de mim por o ter descoberto tão cedo. Essa descoberta significou a rejeição por minha parte de uma série de autores que tentei descobrir à posteriori – fiquei mal habituada, depois disto não há mais nada - me parece.
Não leiam. Experimentem antes um
strogonof, uma gelatina de banana Royal, ou um cheesecake (não cozinhados por mim, sublinhe-se), se ainda não o fizeram.
É que nem isso vos vai saber bem depois disto.

O livro retrata uma noite de insónia simultânea a várias pessoas.
A divisão dos capítulos vai sendo feita consoante as horas da noite (primeiro capítulo – meia noite; último capítulo – 5 da manhã) e os pensamentos vão-nos chegando através de monólogos interiores, surgindo torrencialmente, de modo repetitivo, meio-detorpados e/ou carregados de alguma alucinação característica do estado ínsone; CRUS, repletos de memórias, sentimentos, sensações acerca dos mesmos assuntos e acontecimentos, revelando-se a perspectiva de cada personagem.
O acontecimento central é um enforcamento. Um enforcamento bem bonito até. Com borboletas a cobrir-lhe a cara [agora tenho meio mundo a pensar que Lobo Antunes sucumbiu ao ‘movimento’ (?) emo…].
Agora vou ficar por aqui a tentar calcular a probabilidade de alguém ler o excerto até ao fim. Depois vou rir um bocado
(Sim, eu dactilografei esta merda toda!) e certamente que o riso não há-de chegar do meu sucesso a calcular probabilidades matemáticas mas antes por dedução. Depois dessa, é pois rir ócio
(Sim, eu dactilografei esta merda toda!)





Passagens de ‘ONTEM NÃO TE VI EM BABILÓNIA’,
de ANTÓNIO LOBO ANTUNES

Publicações D. Quixote 1ª Edição, 2006

“ ontem não te vi em Babilónia"
(em escrita cuneiforme num fragmento de argila, 3000 anos a.C.)

Chegava sempre antes da sineta quando ia buscar a minha filha e tirando a madrinha da aluna cega a cochichar cumprimentos em tom de desculpa sem que eu a entendesse
(de tão exagerada na infelicidade dava vontade de gritar - Afaste-se de mim não me aborreça)
não havia ninguém ao portão de modo que o recreio vazio excepto uma árvore de que nunca soube o nome com as folhas demasiado pequenas para o tronco e se calhar composta de várias árvores diferentes
(as mãos do meu pai minúsculas no fim de braços enormes, se calhar composto de vários homens diferentes)
o escorrega a que faltavam tábuas com o letreiro Não Usar e a porta e as janelas trancadas, derivado à impressão que ninguém lá dentro compreendi a madrinha da aluna cega, disse-lhe sem palavras
- Não é exagerada perdão
e como deixei de ter filha cessei de respirar (…) a madrinha da aluna cega aproximou-se carregando cheiros antigos e nisto que alívio a sineta
(-pieguice minha és exagerada sim)
a sacudir as folhas da árvore
(ou os braços do meu pai)

(…) - Não dizia que não a um cházinho
de lúcia-lima, de tília, das ervas que cercavam a macieira e não cortávamos nunca, apetece-lhe um cházinho das ervas junto às quais a minha filha se enforcou aos quinze anos senhora, apetece-lhe assustar-se com a boneca no chão, a cara contra barriga nenhuma que não deixava de girar, uma altura não à meia-noite como hoje
(ignoro como não tenho vergonha de dizer isto:)
mais cedo, encontrei o meu marido a experimentar uma saia minha e os meus brincos, igualzinho às mulheres de domingo na travessa,(…) mulheres de cabelo pintado vestidas de domingo nas suas ilhas de perfume espanhol (…)

A minha mãe: (…)a família seguia-a das molduras e a imagem dela em nova já amarga, já séria, nunca a visito no cemitério conforme nunca visito a minha filha, um lugar a ferver de ossos que procuram exprimir-se, a sineta da capela mais grave que a da escola, nomes que se decifram mal e a ninguém pertencem, a ilusão que uma criança um dia destes no portão e a gente a rodopiar contentes (…)

O meu pai, um fato como deve ser em vez de casaco curtíssimo, empregados que o respeitavam, não um, vários, uma unha suja
(não dele)
a apontar o globo terrestre
- O mundo é grande menina
na crença que eu imaginasse regiões infinitas numa porção de lata amolada no Pacífico e a povoasse a meu gosto, pretos com flechas, naufrágios, arranjar um marido, uma filha e um quintal com uma macieira, que tonta, como se um galho de macieira aguentasse sem quebrar uma rapariga de quinze anos (…)
em miúda morei perto de um cemitério e vi as fosforescências que se erguiam das lápides (…)
O arbusto de groselha iluminado no muro e a apagar-se em seguida, no arbusto não uma corda, o fio de estendal que nem se percebe como não quebrou com o impulso porque a minha filha desviou o banco com os pés, um dos pés pelo menos, deve ter principiado por colocar a boneca no chão
- Quero mostrar-se uma coisa repara (à boneca)
a amarrar a corda no galho
(…)
percebia-se a boneca, não a minha filha, na ponta da corda ou do fio de estendal que ia girando devagar, não de braços afastados, pegados ao corpo numa atitude de entrega, uma boneca de que as borboletas
(dúzias de borboletas)
de que dúzias de borboletas me impediam de notar feições, notar a minha filha em casa a começar a comer empurrando para a borda do prato com a delicadeza do garfo
(não é por ser minha filha mas sempre teve modos distintos)
os legumes de que não gostava, a minha filha a começar a comer, acho que fui clara e peço que me não contrariem neste ponto, a minha filha a começar a comer desculpando-se
- Como nunca mais vinha fui começando a comer
a minha filha a começar a comer, a minha filha viva e de uma vez por todas se não me levam a mal
(espero que não me levem a mal)
não se fala mais nisso.
(…) Uma filha, dei-lhe a boneca numa embalagem com um laço e afastei-me o mais depressa que pude antes que agradecesse, nunca a beijei nem dei a entender que consentia beijos, pedi
- Anda cá
escapando a essa parvoíce a que chamam ternura, que me importa a ternura, para que iria servir-me, importa-me que os ruídos cessem, os do jardim, os da casa e os dos cachorros atribulados de desejo lá fora, o do mundo em resumo, permitam-me que envelheça em paz esperando que misturem os meus ossos com costelas e tíbias alheias num buraco qualquer desde que livre da maçada de um filho a quem seria necessário passear pela mão, consolar, garantir
- Estou aqui
quando julgam que nos perderam e não nos ganharam nunca, assistirmos a uma criança a crescer tornando-se tão amarga quanto nós que esquisito (…)

Deviam sepultar as pessoas com tudo o que lhes diz respeito impedindo-as de continuarem a incomodar-nos à superfície do mundo, de que serve morrer se permanecem aqui dúzias de lágrimas prontas a surgir de cada gaveta, cada arca, cada ângulo da memória, solicitando
- Chorem-nos
desejosas de encontrarem pálpebras a jeito, as nossas
- Somos tuas não vês?
espiolharem-nos por dentro desencantando remorsos onde julgávamos nem um mal
estar para amostra, se reparar lá estão os objectos tentando convencer-nos com os seus pequenos ardis
- A tua avó gostava de mim
- Pertenci ao teu padrinho

- Quando eras pequeno não me largavas nunca
(…)

Para quem chegou aqui sem saltar e está mesmo a pensar ler o livro, informo que tem 479 páginas, o que é mais de 20 e quase 500; mais informo que quem mo ofereceu é distraído e à laia disso sei que está à venda a 20,97€ no sítio do costume – exacto, o Pingo Doce. Oh, agora já não posso usar aquele ‘só sei que nada sei’. Bolas…

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