DOIS POEMAS DE BARACK OBAMA
PAPÁ
cadeira, uma cadeira larga e quebrada
E polvilhada com
cinzas,
O papá passa os canais, toma outro
Cálice de Seagrams, simples, e pergunta
O que fazer comigo, um rapaz novo e verde
Que nem considera a
Falta de sentido do mundo, desde
Que as coisas se me tornaram fáceis.
Fixo os olhos na sua cara, um olhar
Que lhe afasta a testa;
Estou certo que ele não tem consciência dos seus
Negros olhos de água, estes que
Balançam em diferentes direcções,
E dos seus lentos e indesejados espasmos
Que demoram a desaparecer.
Oiço, aceno abertamente até tocar na sua pálida,
Camisola bege, gritando,
Gritando nos seus ouvidos, pendurados
Com lóbulos pesados; mas ele está a contar
A sua piada, e então pergunto-lhe por que
Parece tão infeliz, ao que me responde….
Mas eu não quero mais a porcaria da resposta, porque
Passou todo o tempo, e por baixo da
Minha cadeira eu tiro o espelho que guardei;
Eu rio-me, rio-me à gargalhada, o sangue escorre
Da sua cara até à minha, e cresce
Um pequeno lugar no meu cérebro, algo
Que deverá ser extirpado, como se fosse um
Caroço de melância, com os
Dois dedos.
O papá toma outro cálice, simples,
Repara na pequena mancha de âmbar
Nos seus calções, igual à que eu tenho nos meus, e
Faz-me cheirar do seu cheiro, e este vem
Apenas de mim; ele passa os canais, recita um poema antigo
Que escreveu antes da sua mãe falecer,
Levanta-se, grita, e pede
Um abraço, assim que eu encolho, com os meus
Braços mal conseguindo dar a volta
ao seu grosso e oleoso pescoço, e às suas costas largas; porque
Eu vejo a minha cara emoldurada na
Armação preta dos óculos do papá,
E descubro que ele também se ri.
SUBTERRÂNEO
Grutas debaixo de água
Cheias de macacos
Comendo figos.
Aproximo-me dos figos
Que os macacos
Comem, eles mastigam.
Os macacos guincham, mal
Lhes vejo os dentes, eles dançam,
Lançam-se à água que escorre,
Velhos, as peles secas,
Reflectem a luz no azul.
TRADUÇÕES DE TIAGO NENÉ.UM MUNDO CATITA.
É ÓBVIO QUE SE GANHASSE O EUROMILHÕES ADMITIRIA A HIPÓTESE DE IR PARA CINEMA. ASSIM SENDO, NÃO ME PARECE QUE O VÁ FAZER.
VESTIDOS DE CERÂMICA.
...NÃO, NÃO É PORTUGUÊS NEM DAS CALDAS.
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Guggenheim-Hermitage Museum - VILNIUS, LITUÂNIA
PARA QUEM AINDA NÃO (OU)VIU.
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um filme de MIGUEL GONÇALVES MENDES sobre MÁRIO CESARINY
Mário Cesariny Bom, de nós ficam os filhos se fazes filhos, ficam livros e pinturas se escreves ou pintas, ficam esculturas, etc… Não é grande consolação… para mim não é! Porque se houvesse a eternidade era uma coisa, não é? Mas não há… Não interessa quantos milhares de anos, ou milhões de anos, o planeta terra vai levar para explodir, não é? Portanto acaba tudo por desaparecer, pronto, fsssst! É muito misterioso isto tudo, não é?
Porque é que fica desanimado? . São só desgraças… Ardeu o poço do petróleo, mataram três à esquina da brasserie, sida aumenta, vulcão explode. Isto são as notícias em Portugal. Aliás… se os jornais dessem notícias felizes, vinha tudo para a rua, era uma revolução. Assim, as pessoas ficam em casa cheias de medo.
Compra jornais para o fim-de-semana? . O «Expresso» e o «Semanário». Mas é outro horror, por causa do peso – são quase trinta toneladas de papel, mas lêem-se num instante.
Gosta da televisão? . É raro. A televisão ainda dá piores notícias. Tenho vontade de escrever cartas, partir o aparelho.
A televisão é má em si própria? . É um abuso. Havendo alguém em casa é impossível não a abrir, depois é impossível não a olhar. A televisão é um narcótico: boa para os governos e para a polícia. .
Não tem utilidade? . Só para os casais desavindos e para as discussões de família. Põem-se todos a ver e daí a dez minutos acabou.
Porque é que os portugueses gostam de ver televisão espanhola? . Porque sempre se percebe menos.
É sócio do Grémio Literário? . Fui proposto. Morreu não sei quem e o Sales Lane, com boa vontade, propôs-me. Tentei averiguar se podia lá ir comer à borla. Eu só queria aproveitar uma vez por mês… Mas não – é só para pôr um fato giro e ir como os outros. Portanto, não me interessou. .
Tem ligações à Associação Portuguesa de Escritores? . Acho que sempre paguei quotas até que percebi que ninguém paga – e deixei de pagar. Aquilo não serve para nada… nem dado.
Dá prémios…
Porque é que os escritores nacionais têm pouco conhecimento dos estrangeiros? . Tiraram-lhes a Galiza. A mim não me faz falta; mas a eles, a isto aqui… Sempre era mais gente para ajudar.
A Biblioteca Nacional serviu-lhe de alguma coisa? . Gosto da gente de lá. E fiz lá um estudo obre a literatura de cordel.
Usa dicionário? . Consulto muitas vezes. Primeiro, porque estou um bocado desmemoriado. Segundo, porque já apanhei três reformas ortográficas. Põe acento, tira acento; e há o caso do c, que nunca se sabe onde fica, se no bolso se à cabeça.
A sério… . Há por aí um espanhol que jura que o Sol anda à volta da Terra. É muito interessante.
Mários Cláudios, Saramagos, dizem-lhe alguma coisa? . Ainda não li. Mas pergunto a pessoas de confiança. E tenho duas informações curiosas. Chega-se à oitava página do Saramago e ainda não se viu um ponto final. É a primeira. A segunda é que diz mal do D. João V. Mas a família real não era nada daquela besteira.
Agustina é um caso. . A gente abre uma página do livro dela e percebe que é boa em qualquer parte do mundo. Complica, mas isso não é defeito.
Confia nos críticos literários? . Não me costumam dizer se um livro é uma novela histórica ou uma ficção científica. Li na revista mexicana «Vuelta» que o Memorial do Convento é uma novela histórica. Aqui não dizem o que é nem se chega a saber se gostaram ou não.
Foi sempre assim? . O Gaspar Simões faz muita falta. Mesmo quando dizia asneiras a gente sabia onde ele estava e ele sabia quem era. Depois de ele se ter ido embora não há outra referência. O Gaspar Simões ensinou muitos escritores como se escreve. Ele dizia que isto estava bem; e aquilo, mal. O Alves Redol, no livro seguinte, emendava.
E o Eduardo Prado Coelho? . Aqueles artigos de três páginas que ele publicava no «Diário de Lisboa», sobre o neo-realismo, a semiótica e a metalinguagem! Depois deixou-se disso… e eu sinto falta.
Gosta das cidades? . Porto e Lisboa, sim. Coimbra não me convence, não me apetece descer do comboio.
Tem parecer sobre as amoreiras? . Não acho mal. É uma extravagância. O monumento aos Descobrimentos em Belém é muito pior. Devia ser rapado dali.
Prefere a Lisboa Pombalina? . A Baixa desenhada pelo Marquês é fantástica. Tem as proporções certas – não humilha nem envergonha. A Baixa podia ser Nova Iorque no século XVIII.
Porque é que toda a gente passa férias no Algarve? . Não vale a pena protestar. Acho que são todos ingleses, já. O mais engraçado é que o Algarve é o único sítio do mundo onde há ingleses pobres. Electricistas e gente assim…
O Cesariny fuma a rodos. O Estado quer proibir o tabaco… . Cada época tem os seus puritanismos. Agora é o tabaco. Há uns dias ia de táxi e ouvi uma descompostura medonha. O condutor era um rapaz novo e começou a praguejar – porque os senhores são assassinos, prejudicam o próximo, portam-se como suicidas. Tive de o mandar parar e saí. Paguei só para não ter de o ouvir mais.
Mas o cigarro vale a pena? . O fumo dos cigarros é o luxo dos pobres. Quem não tem dinheiro para ir ao cinema acende um cigarrito. Alivia.
E o 25 de Abril? . Foi uma revolução ortodoxamente neo-realista, com Óscar Lopes em presidente de Portugal.
Colonialismo, ainda há? . Começou outro. Quando o Samora Machel cá veio foi ver a Sé Velha a Coimbra. Ficou encantado – isto é que é! Estava deslumbrado. Percebi, então, que os chefes africanos não querem ser chefes africanos. Sonham com o Reagan, o De Gaulle, o Salazar. Imaginem o Hegel a 60 graus à sombra! Falam de Marx. Isto é, dispensam o que é verdadeiramente negro. A verdadeira colonização começa agora.
Quem se dá mais ao respeito: um rei ou um presidente? . Um, outro ou nenhum. Mas esta história do Gorbachev faz-me pensar nisso. Dizem que é bem intencionado. Mas vai falhar. E se falhar é porque não tem a coragem de ir ao tesouro imperial dos czares. Ia lá, agarrava na coroa e punha-a na cabeça. Mal o fizesse, aquelas repúblicas maravilhavam-se. É como os ingleses. A rainha não serve para nada, mas há um sagrado que conta. Só não sou monárquico por não haver eleições tibetanas, em que os velhos vão aos tugúrios e escolhem uma criancinha. Às vezes, claro, também se enganam.
PORTUGAL E A EUROPA
Traz dinheiro. . As massinhas que vêm, acho que já foram todas gloriosamente gastas a comprar automóveis e quintarolas. Mas a Europa não se deve zangar muito com isso. Ao menos, nós nunca faremos a bomba atómica.
Portugal é europeu? . As instituições são. O povo não. Mas eu gosto do atraso. Digo mal da Europa mas, apesar de tudo, é um quadrado onde nos deixam morrer à vontade. Viver é que não.
O português não pode ser internacional? . Eu já andei à procura do esquimó. Essa ideia da nação, no sentido mais antigo, está além-fronteiras. Quer dizer, o português pode ser alheio à coisa nacional e à coisa internacional. Não há ninguém tão português como o Teixeira de Pascoaes. Os pés e os sapatos dele são portugueses. Mas o resto dele é universal. Não tem que ver com Lisboa, Madrid ou Londres – o resto dele á com as estrelas.
Os portugueses mudaram. . Já não há povo que queira ser povo. Era povo, e queria sê-lo, a rapariga que aparecia de lenço, o rapaz de bigode e da patilha. O povo agora tem pena de ser povo. Quer vestir ganga ou calcinha de flanela. De fora só ficam os ciganos. Continuam a ser o que já eram. E os analfabetos. São uma reserva: De gente ainda não doutrinada. Mas também devem estar a dar cabo deles. Entrevista de 2002 publicada no Mil Folhas, o suplemento cultural do Diário de Notícias. Conduzida por Óscar Faria.
MGM Então para que é que isto serve?
Mário Cesariny Não sei, serve para foder que é muito agradável e dá muito gozo. Serve para amar....e serve para morrer. Pronto! "A criança é a máscara do velho", mas a verdade é que a criança, enquanto criança, é mesmo criança, não é?
Mário Cesariny – O «Diário de Notícias» todas as manhãs. Eu acho que até é um bom jornal, mas quando a gente acaba de ler é um desânimo muito grande. Também não sei o que é que se devia ler…
O David Mourão-Ferreira recebeu quatro no mesmo ano. Ora, quatro prémios pela mesma coisa dá uma imagem de país de imbecis e doidos varridos. Isto contado em França dava cancelamento de passaporte.
Conhece os novos escritores? . O Dante impressiona-me muito. A história do novo para mim não funciona. O actual é um bocado perigoso.
Vai ao teatro em Portugal? . Nunca. Sempre foi mau e agora exageram.
Sente-se bem na Europa? . A CEE quer dizer: tu plantas batatas, ele planta tomates, os morangos vêm de acolá, as calças de ganga fazem-se ali. Depois, todos consumimos. Isso é o lado melhor.
Entrevista de Maria Bochicchio, 2006
Em Maio de 2006, a convite dos professores Piero Ceccucci e Arnaldo Saraiva, participei em Milão num congresso sobre Eugénio de Andrade, onde tive a oportunidade de encontrar o professor Perfecto Cuadrado. Em conversa com ele sobre o surrealismo português, em que é especialista, dei-lhe conta da minha muita admiração por Mário Cesariny, que por sinal fora grande amigo de Eugénio e que eu só conhecia pelos seus poemas. Para grande surpresa minha, Perfecto Cuadrado passava-me daí a pouco o seu telemóvel para as minhas mãos, dizendo-me que do outro lado da linha estava o autor de Pena Capital. Já não sei bem o que dissemos, para lá da divertida troca informal de cumprimentos. Mas sei que logo ali marcámos um encontro em Lisboa. Esse encontro aconteceu em finais de Junho, num dia invulgarmente quente. Estava longe de saber que esta seria (creio) a última entrevista literária concedida por Cesariny. Mas «a maravilha do acaso», de que o poeta fala, às vezes também ocorre nas vidas quotidianas. Cesariny recebeu-me na sua casa: um sorriso vivo, um olhar aberto e límpido, e aquele seu cigarro, mais cinza do que cigarro, como prolongamento natural dos seus dedos. Uma ironia gentil que qualquer transposição para papel acaba sempre por atraiçoar. E as primeiras palavras, que me receberam à chegada: «Que posso fazer por si? Disponha à vontade.»
E o que procurava na sua poesia? O real, todos os aspectos do real, porque o real era para ser combatido, e nós procurávamos a defesa do amor, da liberdade e da poesia.
O real, o «real quotidiano». Porquê o real quotidiano? Porque não presta. Porque é o que menos interessa. Eu sempre desejei ir além, ir para dentro. O que presta é o amor, a liberdade e a poesia. A poesia é esse real absoluto que quanto mais poético mais verdadeiro. Era Novalis quem o dizia. A poesia vale como uma liberdade mágica.
Se tivesse de isolar um corpo poemático, quais seriam para si os poemas que exprimem melhor a sua arte poética? É muito difícil para mim responder-lhe directamente, não sou um crítico, não tenho essa distância para falar da minha poesia. Mas creio que a minha arte poética concentra-se nos poemas «Mágica», «Cabala Fonética». A Cabala é importante na teoria surrealista, é o ponto supremo onde todas as coisas seriam uma só, e também em «arte poética», onde se impõe por exemplo a união entre ritmo e rima.
Nos seus poemas usa ritmos, versos e estrofes distintos. Gosta de variar de estilos ou de modalidades expressivas, incluindo as populares? Gosto de quadras de modelo popular, como gosto de anáforas. E sabe que publiquei uma antologia de folhetos de cordel? As palavras encantam-me pela sua ineficácia. São um «exercício espiritual», são aquilo que é preciso dizer. Para mim, a palavra poética é a palavra verdadeira. É a única que diz.
Na sua poesia quis valer-se de linguagens diferenciadas ou elas sempre estiveram ao serviço da sua linguagem? Tive uma fase em que era contra o neo-realismo, isso nos primeiros poemas, na Nobilíssima Visão, mas usava uma linguagem neo-realista, escrevia como um neo-realista. Depois, a poesia passou a ser texto automático, fascínio pela técnica da escrita poética, experimentalismo.
Trabalhava muito os seus poemas? Não muito. Não é poesia trabalhada, é antes poesia encontrada. Esteticamente, era o que acontecia. Trabalhava obcecado e dominado por esse tal «daimon».
Segundo Mallarmé e Valéry, a poesia pode resgatar a arbitrariedade da linguagem... Mas a linguagem é arbitrária.
Sempre? Essa arbitrariedade está no desconforto permanente entre nós e o mundo, por isso a linguagem é e não é arbitrária.
E, quando concluía o trabalho, não voltava atrás? Uma vez entregue o poema, nunca mais o lia.
Também se dedicou à música e, como poeta e pintor, por certo acredita nalguma correspondência entre as artes. Se tivesse de indicar os instrumentos musicais mais adequados aos seus poemas, quais nomearia? A flauta grega e o violino actual.
E será o poeta um músico? O que é o poeta? O poeta é o autor do poema e é também um actor, um prestidigitador. Ele representa o seu próprio impulso poético. No «Manual de Magia», que passou a chamar-se Manual de Prestidigitação, o poeta é um mago. É um mago que não encontrou os utensílios necessários para a sua própria alquimia. E que ficou preso na alegria do mundo. O que ele não encontrou permitiu-lhe estar disponível para a maravilha do acaso.
Mas a «maravilha do acaso» não o impede de falar na primeira pessoa... A primeira pessoa é aquilo que tenho mais à mão.
E o leitor? Pensa no leitor quando escreve os seus poemas? A poesia não se dirige a um leitor, dirige-se a mim próprio.
Lembrei há pouco que também é pintor. Sente-se mais um pintor-poeta ou um poeta-pintor? É a mesma coisa.
Como foram os seus primeiros contactos com o surrealismo? Através de Alexandre O’Neill, Maurice Nadeau. No fim da II Guerra Mundial, o surrealismo tinha acabado, mas nós achávamos que ainda não tinha acabado. Então adoptámos o surrealismo, porque ele representava a realização total do nosso estado de espírito, a defesa do amor, da liberdade e da poesia.
E estabeleceu alguma relação com o surrealismo italiano? Lembro-me de Lanfranco e do movimento do realismo mágico, mas não tive contactos directos nem fui influenciado.
Por que autores se sentiu mais influenciado? Por André Breton, claro, por Antonin Artaud e até pelas cantigas de amigo. Actualmente, creio que pelo Mário de Sá-Carneiro.
Olhando para a realidadepoética e cultural de hoje, que diferenças encontra com a do seu tempo? Se não me pergunta, eu sei. Mas se me pergunta, já não sei.
Então terminemos com Mário Cesariny a fazer uma pergunta a Mário Cesariny. A pergunta, também não a sei. Mas a resposta... «sarà quel che sarà!»
Poeta e pintor morreu este domingo
O Mário nasceu em Lisboa, em 1923. Como era a sua vida familiar? Era a de uma família respeitável, com quatro filhos. O meu pai era industrial de ourivesaria. Ele e a minha mãe não se davam muito bem. Foi um mau casamento. Posso contar essa história, que é engraçada. A minha mãe, juntamente com a minha tia Henriette e o meu avô [Pierre Marie] Cesariny Rossi chegaram a Lisboa, de passagem para a América do Norte. Elas não sabiam uma palavra de inglês, mas queriam ir para lá ensinar não sei o quê. Nessa altura, havia as chamadas institutrices, raparigas que tratavam das crianças, mas não como criadas – também eram professoras, ensinavam línguas e bons modos. A tia Henriette e a minha mãe fizeram isso em Espanha, durante bastantes anos. Ensinavam Francês e coisas assim. Chegaram a Lisboa e ficaram por cá. Tornaram-se professoras num colégio, onde conheceram o meu pai e o meu tio. Para casar a minha mãe exigiu uma prenda de infanta. Sim, casava, mas queria uma prenda muito grande.
Um dote? Queria que fossem viver para Paris. O meu pai concordou. Casaram e foram, em 1914. Chegaram lá, rebentou a guerra e voltaram para trás. Nós não nascemos em Paris por causa da Primeira Guerra Mundial.
Que recordações guarda da sua infância? O meu pai era de uma família de ourives do Norte. Gostavam de passar férias de Verão em Moledo do Minho, perto de Caminha, quase na fronteira. O Norte era muito livre de costumes. Rapazes e raparigas f.... Só o padre é que ralhava com elas, à saída da missa. Eu assisti a isso, ele dava-lhes caneladas e dizia: ‘Vais para o mato com eles...’ Elas riam-se. Não me dei bem com o meu pai, claro. Nenhum de nós se dava bem com ele. Quando casou com a minha mãe, gostava muito dela, mas depois não sei o que aconteceu. Talvez fosse o feitio dele. Batia-lhe. Éramos quatro filhos atrás da mãe, a defendê-la do pai.
Ele chegou a bater-lhe à vossa frente? Sim, mas gostava dela, à sua maneira. Tenho a impressão de que a minha mãe casou com ele na mira de ir para Paris.
É verdade que o seu pai queria que fosse ourives? Pois queria. Isso foi uma grande luta. Depois também não me deixou seguir música. Quando fazia exercícios ao piano, ele ficava doido. Tive de desistir.
Chegou a estudar com o Fernando Lopes-Graça… O Graça dava-me lições de graça. O paizinho não pagava isso.
A relação com o seu pai era, portanto, complicada. Era impossível. Tudo o que ele me propunha, eu não queria.
E com a sua mãe, como era? A mãe foi uma santa. Devo-lhe tudo, protegeu-me sempre
O Mário teve três irmãs. A Henriette, a Carmo e a Luísa.
Além de ser o mais novo, era o único rapaz… Era. E ainda por cima saí homossexual, imagine.
Acha que o seu pai soube? A minha mãe protegeu-me sempre, nunca se falou nisso com o meu pai. Mas acho que sabia. Uma vez mandou-me às p... e eu não fiz nada. Muitos anos depois, o meu cunhado mandou-me a uma menina e eu portei-me bem, mas vim de lá com uma dúvida horrível. Dei duas de seguida, sem prazer nenhum, e pensei que talvez acontecesse o mesmo às pessoas que iam comigo
Depois da primária, foi para a Escola António Arroio...
Antes disso, estive um ano no Liceu Gil Vicente, mas não era para seguir carreira, era para o meu pai saber se eu era estúpido ou não, se tinha boas notas.
E tinha? Tinha. Depois ele tirou-me de lá.
Como é que o Mário chegou à Escola António Arroio? O meu pai primeiro pôs-me lá para tirar o curso de cinzelagem. E tirei. Depois mudou-se isso para um curso de habilitação às Belas-Artes, por minha iniciativa. A escola tinha um bom director, o Falcão Trigoso, um velhote de barbicha que pintava amendoeiras floridas e coisas assim, mas que nos defendeu da mística do Salazar. Quando, por fim, o Salazar o pôs na rua, no dia seguinte entraram os uniformes da Mocidade Portuguesa, a separação dos sexos, as aulas de moral... Mas nós já estávamos precavidos por esse director.
Foi na António Arroio que conheceu a trupe surrealista? Quase toda. O António Maria Lisboa não andou lá, nem o Pedro Oom, nem o Risques Pereira. O Cruzeiro Seixas, sim, o Fernando José Francisco, sim. Não me lembro de mais…
Foi lá que desenvolveram as primeiras actividades? O Café Hermínius é que era a nossa academia.
Como é que surgiu o movimento surrealista em Portugal? Não havia bem movimento, havia um grupo. Movimento não se podia ter, por causa do Salazar. Foi uma época difícil para quem pintava. Foi difícil para toda a gente, com a ditadura, não é? Não havia galerias para expor, a não ser a do Estado – o Secretariado Nacional de Informação – e a dos velhotes conservadores – a Sociedade de Belas Artes. Nenhum desses salões nos convinha. A pintura passou a ser uma coisa pessoal, para nós. Nem pensávamos em expor.
Era sobretudo uma manifestação da vossa liberdade… Lembro-me que, uma vez, na primeira exposição que fizemos, em 1949, resolvemos fazer uma noite dos poetas, num aposento muito engraçado, todo forrado com figuras, que era da Pathé-Baby, ali ao pé da Sé Catedral. Lemos poemas do Victor Brauner, do André Breton, do Antonin Artaud e alguns nossos. Com uma certa encenação. Estilhaçámos uma data de vidros no chão e deitámos tinta. Mas a encenação, grande ou pequena, era só para nós, porque não foi lá ninguém, nem nós queríamos que fosse. Fechámos a porta à chave. E assim continuámos. A imprensa de Lisboa não dedicou uma linha à nossa exposição, mas a do António Pedro e do então Grupo Surrealista de Lisboa causou um escarcéu desgraçado. Até apareceu no jornal sonoro. O António Pedro tinha muitos conhecimentos, assustava muita gente, nós não assustávamos ninguém …
A ideia de fazerem para vocês tinha só a ver com o ambiente da época ou, no fundo, queriam mesmo que fosse assim? Nós fizemos uma revolução. Mas acho que implodimos, não explodimos. E andámos sempre clandestinos por aí. Clandestinos no sentido lato: fazer uma coisa num sítio e desaparecer, depois aparecer noutro e desaparecer… Até que houve as célebres sessões na Casa do Alentejo, em que fomos dizer ao povo o que era o surrealismo.
E o que era o surrealismo? Éramos nós [risos]. Lemos textos, poemas, e uma declaração chamada 'Afixação Proibida'. A assistência gostou muito e depois da sessão queria que explicássemos o que era o surrealismo.
Para o Mário, como começou o surrealismo? Estávamos eu e o Alexandre O’Neill muito incomodados com os neo-realistas e ele, uma vez, trouxe-me um livro em francês e disse: ‘Lê isto’. Era a História do Surrealismo, do Maurice Nadeau, que, no final do volume, dizia que os surrealistas já tinham dado o que tinham a dar. Mas o nosso começo foi aí.
Em que altura foi isso, mais ou menos? Em 1947.
Também nesse ano, foi a Paris e conheceu o André Breton… Fui. Mas eu já ia surrealista, não fui lá ser surrealista. Queria era conhecê-lo!
Como é que se deu esse encontro? Fui a casa dele, bati à porta e ninguém respondeu. Ele tinha um letreiro à porta a dizer: ‘Não quero entrevistas, não quero isto, não quero aquilo’. Eu deixei lá um papel: ‘Não quero entrevistas, não quero isto, não quero aquilo. Quero falar consigo’. Então, à segunda vez que lá fui, recebeu-me e combinei umas coisas com ele, que o António Pedro tratou de destruir, porque foi lá depois. Eu tinha a ideia de uma pequena publicação, uma coisa modesta, porque não havia muito dinheiro, nem havia razão para fazer muito barulho, por causa da polícia. O António Pedro falou com o Breton, pôs este projecto de parte e propôs a reedição da Variante, uma revista que ele fazia em grande luxo, com o surrealismo de todo o mundo e não sei o quê. Depois, não fez. Quer dizer, não houve a minha coisa modesta nem a coisa espampanante dele. Primeiro, pedimos colaborações para Nova Iorque, para Paris, para toda a parte. Depois de nos entregarem as coisas, ele decidiu que não havia dinheiro. Era mentira. Tivemos a lata de devolver tudo. Coisas dessas fizeram a minha saída do Grupo Surrealista de Lisboa.
E acabaram por conduzir à formação do grupo dissidente, Os Surrealistas. Pois… Uma parte do nosso grupo andava na António Arroio – tanto do grupo dissidente, como do oficial. Estava o Fernando Azevedo, o Vespeira, o Júlio Pomar... Quanto a nós, estávamos eu, o Cruzeiro Seixas, o Pedro Oom… Depois, estes três ou quatro trouxeram o Fernando José Francisco e fizemos uma exposição, em que entrou também o Carlos Calvet. A própria escolha do nome, Os Surrealistas, foi uma provocação, como quem diz: ‘Nós é que somos os verdadeiros’. A nossa simples existência já era uma provocação e quando a afirmámos publicamente, isso então foi um grande sarilho. Até que eles desistiram. Fecharam a loja sabe com que álibi? Com o da ‘discrepância de horários’. A gente também lhes fazia a vida negra, na Casa do Alentejo, naquelas sessões… Acabaram com o grupo e foram fazer teatro para o Apolo.
Depois das primeiras exposições, houve uma altura em que esteve algum tempo fora de Portugal... Onde estive mais tempo foi em Inglaterra. Com as idas e vindas, estive sete anos em Londres, na década de 60. Estava farto de latinos e fiquei a gostar dos anglo-saxónicos. Chamam-lhes hipócritas, mas eles não são. São actores. Estão sempre a representar Shakespeare. Um vagabundo chega à tabacaria e pede: ‘May I have a box of matches, please?’ Isto é linguagem de príncipe. ‘May I have’... ‘Poderei eu ter ...Uma caixa de fósforos’. Um vagabundo. Os outros são iguais ou ainda mais sofisticados. Já os americanos são uma espécie de ingleses a quem tiraram a inquietação, a metafísica. De maneira que eles andam muito contentes, ‘How are you?’, ‘Fine, thank you’. Com imensas dores de estômago porque a comida é muito má.
O Mário também costuma falar de uma estada em Paris, financiada com a venda de um quadro da Vieira da Silva… É verdade. Eu escrevi-lhe a dizer: ‘Maria Helena, estão a apertar muito o rabo do gato’. A polícia fazia-me lá ir como suspeito de vagabundagem. Então, a Vieira da Silva, através do Manuel Cargaleiro, deu-me um quadro dela, muito bonito. Eu só pedia dinheiro para a passagem, mas aquilo rendeu imensa massa, que eu fui conspicuamente gastar lá para fora. Como é que conheceu a Vieira da Silva? Ela veio a Lisboa, e eu escrevi um artigo a falar nela, porque ela era desconhecida por cá. Aconselhava-a a não se demorar muito, porque ainda ficava estragada. Ela gostou e quis conhecer- me. Fui conhecê-la ao ateliê dela e do Arpad Szenes, ali nas Amoreiras.
A partir daí, ficaram muito amigos. De resto, o Mário, sempre foi assim: capaz de grandes amizades, grandes amores e grandes ódios... ... Grandes nevoeiros... Foi o que aconteceu com o próprio grupo surrealista dissidente. Muitos de vós seguiram caminhos diferentes, com algumas rupturas pelo meio. A partir de certa altura, este grupo também se desfez. O Cruzeiro Seixas foi para África, o António Maria Lisboa morreu tuberculoso... Deixámos de nos procurar. E o Mário ficou isolado como representante do surrealismo em Portugal.
Não pensava nisso. Nem as pessoas acreditavam. Para elas, o António Pedro continuava a ser o grande surrealista. Com a democracia, esfuma-se a história do surrealismo.
O Mário continuou a escrever e a pintar, mas já sem aquele espírito de grupo. O José Escada, o pintor, fazia umas coisas em papel vermelho, e fez uns cravos, os cravos do 25 de Abril, com uma dedicatória bonita: ‘Ao Mário, que há muito tempo desconhece o perfume’.
Diz que a liberdade devia estar acima de tudo. É essa a essência do surrealismo? A liberdade, o amor, a poesia. É esta a tríade do surrealismo, que vem colocar-se ao lado, ou à frente, da liberdade, igualdade, fraternidade, da Revolução Francesa. Era essa a nossa bandeira.
E o Mário passou com a mesma paixão por todas essas três coisas… Como já lhe disse, a nossa descoberta do surrealismo não fez uma explosão, fez uma implosão. Também não era tempo de andar a falar alto. Íamos para a choça, o que não nos agradava muito. Os neo-realistas ficavam muito honrados quando iam presos. Nós não achávamos graça nenhuma [risos].
Diz que, para si, a pintura é mais terapêutica do que a poesia. Porquê? Na poesia tens de escrever se estás zangado, se estás optimista, se estás apaixonado. Coisas que na pintura não existem. Embora não seja, parece uma coisa mais impessoal. Não fala das dores de estômago ou das dores de cabeça, das dores de corno. O pincel não dá isso.
O que é que o pincel dá? Dá uma realização da pessoa, de que o quadro é a prova. Faz sentido perguntarem-lhe o que é que tem mais peso para si, se a pintura, se a escrita? À medida que fui agarrando mais a pintura… ou, ao contrário, à medida que ia deixando mais a poesia escrita, ia-me ocupando mais com a pintura. Com a poesia pintada, se quiser. A poesia morde mais o fígado: se odeia, odeia, se não odeia não odeia. A pintura parece uma coisa objectiva, fora de nós. Suja as mãos, limpa-se o pincel, há o cavalete e a tela. A poesia não. É apenas entre a nossa cabeça e o papel.
Costuma falar muito do ambiente, de como a Lisboa de hoje já não é a mesma, queixa-se da falta dos cafés...
A Lisboa do nosso tempo acabou. Os cafés onde a gente se reunia desapareceram, começaram por pôr lá a televisão. Ora, é impossível não olhar para uma televisão ligada. Já não podíamos estar à vontade. Estávamos ali metidos para perder a vida, para não trabalhar em escritórios e aturar o patrão nojento. Éramos, de facto, todos vagabundos. Embora eu é que tenha merecido a honra de ser considerado suspeito de vagabundo pela polícia. No fundo, só o 25 de Abril é que acabou com isso. Em compensação, também dissipou a atmosfera de encontro que havia dantes. Hoje está cada qual no seu buraco.
Como é que lida com o reconhecimento que tem recebido nos últimos anos? Não dou muita atenção a isso, sabe? Recebi com alegria a Ordem da Liberdade, porque era a Ordem da Liberdade. Liberté chérie! Agora vivo num deserto. Tenho alguns amigos, muito poucos. Mas realmente não há onde ir, em Lisboa. Quer dizer, para mim, porque a gente mais nova junta-se nos pubs, com a música muito alta, para não terem de falar eles. Nem falar, nem pensar.
Em Outubro vai editar um livro de serigrafias, em homenagem a Timothy McVeigh, condenado àmortepelo atentado em Oklahoma. O que pensa da pena de morte? Não devia ser permitida. Ele também não devia ter morto 700 pessoas. Mas olho por olho, dente por dente é a selvajaria.
Abriu no dia 20 de Setembro, no Círculo de Belas Artes, em Madrid, uma retrospectiva dedicada à sua obra. Como se sente em relação a isso? A minha perna não me deve deixar ir lá, o que é uma chatice, mas por outro lado é bom. Eles que se distraiam uns aos outros. É claro que fico contente por ter uma exposição em Madrid, mas por outro lado não ligo nenhuma. Estou-me bastante nas tintas. Não digo isto aos organizadores, mas é a verdade. Quero lá saber!
Já o ouvi dizer qualquer coisa do estilo: está o poeta, o artista, no pedestal, e depois volta para casa sozinho. O Mário sente-se só? Acho que sim. Sinto-me só, com as minhas ideias, que me fazem companhia, e com um ou outro amigo que ainda existe, com quem fizemos batalhas, como o Cruzeiro Seixas ou o Fernando José Francisco… Ou o Mário Henrique Leiria, que morreu, o António Maria Lisboa, que morreu, o Pedro Oom, que morreu, o Henrique Risques Pereira, que morreu, o Fernando Alves dos Santos, que morreu... Tenho de me sentir sozinho. Estava escrito que eu ia durar até aos 80 e tais.
Como lida com a idade, como envelhecimento do corpo? A idade põe-me uma série de chatices físicas que me impedem de atingir a metafísica. São coisas várias que me ocupam e me impedem de circular normalmente.
Mas a cabeça está óptima… Acha?
E o Mário, o que acha? A cabeça tem um órgão vital à disposição, chamado Eros, a vida erótica, que me faz falta, porque essa vida para mim acabou. Se o cérebro ainda pia alguma coisa, é muito de admirar [risos] …
Fica a liberdade e a poesia… Fica… Já não é pouco…
O Mário apaixonou-se muito? Acho que a vida sem paixão é um deserto.
Mas o grande amor, aquele de que falam os poetas, encontrou- o? Talvez tenha encontrado e não tenha dado por isso. Houve realmente um amor importante, com uma pessoa que já morreu. Um amor que acabou muito mal, com a PIDE metida na nossa cama, uma coisa horrível. Acho que depois disso, dados os resultados concretos, troquei a Grécia por Roma. Sabe o que eu quero dizer? Há o Eros mental e depois há o que se espalha pelo corpo, que é outra coisa.
Não quer explicar melhor? A Grécia foi um amor que eu tive com um moço. Ele depois foi para a tropa e escreveu-me uma carta que a PIDE leu. Ele ia indo parar a África por causa disso, porque dizia: ‘Não sei quando saio da tropa. Os nossos patrões, os americanos, é que devem saber’. A PIDE pegou naquilo e meteu-o na cadeia. Mas a carta era também uma carta de amor, sabe? De maneira que era demasiado horroroso ter a PIDE na cama connosco. E assim começou a Roma: mais sexo do que amor.
Nunca mais se encontraram? Encontrei-o esporadicamente, já sem elo amoroso.
Voltou a ter esse elo com alguém? Não.
É por isso que diz que trocou a Grécia por Roma. Não imagina a quantidade de pessoas que eu fiz.
Há até uma frase sua, em que diz: ‘Rapazinhos por dia, dois, marinheiros, três’. [risos] Eu tinha um amigo espanhol que estava cá, o Francisco Aranda, que conhecia um inglês, daqueles muito sofisticados, aristocratas, mas muito inteligentes. Ele veio cá e o Aranda apresentou-mo. Estávamos na conversa, eram cinco e meia: ‘Tea Time’. É hora do chá. Eu pensei: ‘Espera aí que já te dou o chá’. Então, fomos com esse amigo inglês assistir à saída da Marinha. Sabe o que aconteceu? No dia seguinte voltou para Londres – não teve nenhum caso, foi só de ver – arrumou as coisas dele e veio viver para cá. Nessa altura, os marinheiros recebiam o fardamento e iam à costureira para o ajustar bem. Quase se via o contorno do sexo. Eles tinham vaidade nisso, além de que havia gente bonita.
Nessa altura, sendo tudo tão escondido, eram assim tão fáceis os contactos sexuais entre homens? Cheguei a publicar num jornal uma coisa que hoje não se entende: Portugal era o país mais homossexual do mundo. E não era só a Marinha. O 25 de Abril, com a libertação dos homossexuais, também libertou a Marinha desse hábito. Passaram a considerar-se uns homenzinhos que não fazem essas coisas. Agora fazem entre eles ou com um tenente qualquer. Não sei o que os chefes lhes disseram, mas realmente não apareceram mais os marujos. Mas apareceram os comandos. Todos os dias havia passagem de comandos na estação do Rossio, para engate.
Qual é a sua opinião sobre as manifestações do orgulho gay, hoje em dia? Acho feio, porque em vez de aparecerem como pessoas normais, põem umas mamas, pintam-se, ficam uns verdadeiros abortos. E saem assim para a rua. Eu, que sou homossexual, se encontrasse aquilo na rua, passava para outro passeio, porque em vez de angariarem simpatia, ofendem.
Quando é que o Mário tomou consciência da sua homossexualidade? Nos meus tempos da António Arroio, já sabia.
Mas nessa altura não era uma coisa que fosse falada. Como é que lidou com essa descoberta? Lidei conforme podia. O que fazia era em segredo, sempre. Tem a ver com a Lisboa dessa época. Havia urinóis espantosos, que eram sítios de encontro. Estavam sempre cheios. Muitas vezes, quem queria mesmo mijar, ficava aflitíssimo, porque as pessoas não saíam de lá [risos].
Que idade tinha quando teve as primeiras experiências? Foi para aí em 1942 ou 43.
Chegou a confessar a sua homossexualidade às autoridades. Quer contar como foi? Isto era assim: três vezes apanhado na rua com outro senhor, dava direito a ser mandado para a Polícia Judiciária. Depois, a Judiciária teve-me como suspeito de vagabundagem todo o tempo que quis. Não queriam provas, queriam a suspeita, porque a suspeita podia continuar sempre.
Então, um dia, perdeu a paciência, foi lá... ... e disse: ‘Sim senhor, sou homossexual’. Eles perguntaram: ‘Com quem?’. E eu respondi: ‘Não lhes posso dizer, porque quando faço coisas, vou a um cinema e às vezes nem vejo a cara da pessoa que está envolvida comigo’. Quando ameaçaram pôr um agente a seguir-me na rua, disse-lhes: ‘Esse é o vosso trabalho, mas eu conheço muita gente que não é homossexual e vocês ainda vão ter algum desgosto’. Era assim, uma coisa absurda. Na verdade, a polícia tinha razão. É que eu era mesmo um vagabundo, sem emprego certo.
Como sobrevivia? Gastando o mínimo. A minha mãe ajudou-me muito.
O Mário ainda tem família, fruto dos casamentos das suas irmãs? Sobrinhos. Ainda tenho algum contacto com eles.
A sua irmã Henriette morreu há dois anos e meio. Tinha uma relação especial com ela, não tinha? Amávamo-nos muito. Quando lhe morreu o marido, voltou para casa dos pais. O nosso pai, entretanto, tinha ido para o Brasil com uma amante. Eu e a Henriette vivemos muito tempo juntos, numa verdadeira irmandade.
O Mário pensa na morte? Não muito. Penso mais nas doenças.
Acredita na imortalidade? Não sei. Quando lá chegar, eu telefono [risos]…
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