" DOODLES & CARTOONS "



0 COMENTÁRIO(S)
Passou a manhã sobre
a mesa da cozinha a desenhar fruta,
rabiscos e uns bonecos com balões estilo bd
a lançarem-se sarcasmos, e foi variando
entre as suas compilações de música
indie, melodias inseguras, outras
simplesmente histéricas. Ao lado
um saco de rebuçados de mentol, a chávena
de chá preto, um maço e um cinzeiro.
Ia deixando os grandes e húmidos olhos
borrados, num rastro acastanhado em que
aos poucos se perdeu a tarde inteira.

Eu fui passando uma vez por outra
para espreitar o que estava a fazer;
gosto de cheirar-lhe
as mãos, sussurrar-lhe disparates junto
ao ouvido, ou pedir-lhe a opinião
sobre estrofes assim, em que
pouca coisa acontece.

Às vezes penso que passamos muito tempo
fechados, há aqui um vazio que me dói
nos joelhos, põe-se a roer-me as unhas
e os ossos, a escrever por mim estes versos.
A ela dói-lhe no ventre, espasmos
desse mesmo vazio. Afasta-se e vai parindo
(do quarto à casa-de-banho e pelo corredor)
silêncios, uma enorme vedação em seu redor.

Têm vindo a crescer pilhas de desnecessários
livros no chão, arrumados contra as paredes
pela ordem em que os fomos deixando
a meio. Ela entretêm-se a alinhá-los com os pés,
descalços, enquanto passeia pelo apartamento
em cuecas apenas – as preferidas dela:
verde clarinho, com letras
cor-de-rosa à frente, a dizer «revolução».
Este fim-de-semana acabou por organizar
sozinha uma pequena manifestação. Barricada
na despensa, entre variações de humor,
lá ia tendo bons e maus motivos para
não querer sair.

Eu tenho deixado de fingir convicções
só para ela ter com quem brincar
às consciências, políticas ou sociais,
umas noções dessas arranjadas à pressa
a ver se ainda salva o mundo.
Já não sei quantas vezes mudámos
de ideias e andámos perdidos por uns tempos
para enfim voltarmos sempre a estas
divagações extra-literárias. Mas hoje,
não sei explicar porquê,
também eu sinto que ando a precisar
de levar um tiro por uma causa qualquer,
um encantado ponto final que venha
beijar-me a boca.

Estou aqui entornado sobre o vestido
que ela acaba de enfiar pela cabeça e aquelas
cores silenciosas pouco me trazem.
Disse que gostava de ir a algum lado,
mas entretanto não resolveu onde. Está ali
sentada sobre o velho televisor da Siemens
do tempo em que o meu pai tinha idade
para ser meu filho. Regressa. Fala por falar:
diz que gostava de ter filhos, um dia…,
mas também diz várias vezes que seria
uma péssima mãe
– possivelmente espera que a contrarie,
eu prefiro não. Estamos os dois
demasiado crescidos para ainda aguentarmos
alguém que repita constantemente
que vai ficar tudo bem.

Felizmente faz algum tempo que deixou
de insistir em chamar a atenção de família
& amigos por coisas de nada.
Isto depois de algumas lavagens
ao estômago, suaves prestações de sangue
e uma série de desiludidos suicídios. Entretanto
anda mais calma e até começou a juntar
dinheiro para uns implantes. Ainda houve
um episódio no outro dia depois de vermos
o Revolutionary Road. Fartou-se de chorar.
Pensei que íamos voltar ao mesmo, mas não,
adormeceu e passou-lhe.

A maioria das noites vamos enrolando
paisagens e fumando-as até estarmos exaustos,
desnorteados depois de tantas viagens
no tecto do quarto. Inchados de sono
saímos e entramos no abraço um do outro,
acho que visto de fora ainda devemos parecer
apaixonados. Outras noites fico até mais tarde
enquanto ela dorme de olhos abertos, com
uma estranha e infantil meiguice no rosto,
e às vezes a meio de um sonho
larga frases em inglês – “rain keeps falling in
my head… where it comes from I don’t
know and I don’t know” –, restos eternos
de canções que não sei onde ouve
e outras ausências que soletra tristemente.
Também não sei o que pensa se sou eu
quem dorme, não sei sequer se fica a olhar.

Muitas vezes acordamos os dois
um pouco eufóricos a horas improváveis
e dá-me vontade de fugir com ela.
Penso que se calhar nos devíamos vestir pior,
tomar banho menos vezes, abdicar
dos últimos planos que ainda nos restam
e metermo-nos num comboio
sem destino. Como naquelas histórias
que já não se contam às crianças, agora
presas e vigiadas nestas cidades esquisitas
de prédios inclinados com o peso
sobre as nossas costas,
jardins abandonados com fontes silenciosas
que vão vivendo das chuvas e no fundo
guardam o sono profundo de velhas bicicletas.

Sei que é uma imagem fácil, uma ideia
vulgar, mas prefiro assim mesmo,
deixar que isto termine por cima
de uma sensação envergonhada,
vibrando como um eco que nos lembre
que agora como antes ainda podemos
mudar alguma coisa. Se ela quiser
vamos embora hoje mesmo.

 
Diogo Vaz Pinto

0 COMENTÁRIO(S):

newer post older post

O ARQUIVO.

OS VOYEURS.