| Antes do vídeo, do DVD, dos canais televisivos pay-per-view e da Internet, os cinéfilos dependiam do que as salas exibiam ou do que a televisão ia oferecendo. Hoje, o cinéfilo transformou-se no seu próprio programador. Vê Nouvelle Vague e filmes série B, compra DVD e pirateia na Internet e ainda vai à Cinemateca. Quem é o novo cinéfilo? E cinefilia ainda quer dizer alguma coisa? "Cada um o Seu Cinema", um filme que ontem estreou, e "Dicionário de Cinema para Snobs", um livro que acaba de ser editado em Portugal, deixam pistas.
João Félix nasceu em 1943 e "já tinha a barriguinha cheia de peplums como 'Quo Vadis'", vistos em salas de cinema, quando o primeiro televisor chegou a Ílhavo, perto de Aveiro, de onde é natural. David Teles Pereira tem 23 anos, passou a infância em Elvas e descobriu o cinema do outro lado da fronteira, com os filmes de terror de série B que comprava nos video-clubes espanhóis.
Ambos são cinéfilos compulsivos, mas não parecem ser muitos os pontos de contacto entre a cinefilia do engenheiro reformado e a do jovem advogado e co-director da revista de poesia "Criatura". No prefácio ao "Dicionário de Cinema para Snobs", dos críticos americanos David Kamp e Lawrence Levi, que a Tinta da China acabou de editar em Portugal, Pedro Mexia, subdirector da Cinemateca, avisa que o livro não trata do "cinéfilo clássico", que "sabe tudo do expressionismo alemão e nunca confunde William Wyler com William Wellman", mas antes de "uma criatura mais recente, cujo modelo não é Truffaut mas Tarantino", que "conhece as referências canónicas mas exibe um gosto mais contemporâneo e abrangente", que "não cresceu em cinematecas mas em lojas de vídeo".
Essa ideia de que a relação do espectador com o cinema mudou radicalmente está também em boa parte das curtas-metragens do filme colectivo "Cada Um o Seu Cinema", encomendado pelo festival de Cannes para comemorar o seu 60º aniversário, em 2007, e que ontem chegou finalmente aos cinemas portugueses. O que distingue a nova da velha cinefilia não passa apenas pelas facilidades de acesso, mas também por uma subversiva indiferença ao cânone de cineastas e obras que gerações de académicos e críticos foram consagrando. João Félix gosta de "África Minha", de Sydney Pollack, e admite-o com o prazer malandro de quem confessa um pecado. David Teles Pereira é fã da saga "The Evil Dead", de Sam Raimi, ou de "A Noite dos Mortos Vivos", o filme de estreia de George Romero, e di-lo com a mesma naturalidade com que fala da sua admiração por "Roma, Cidade Aberta", de Rosselini, ou "8 1/2", de Fellini, que viu em ciclos da Cinemateca.
Ouvir João Félix contar como se tornou cinéfilo é visitar um mundo desaparecido, no qual os projeccionistas paravam o filme para repetir alguma cena mais vagamente erótica - "um daqueles beijos à Hollywood, quase sempre muito mal dados" - que a assistência acabara de aplaudir. Ainda hoje, a sala de cinema é o lugar onde se sente mais confortável, embora lamente já não ver "o cone de luz, com aquelas poeiras a cintilar".
Fanático do rigor na exibição, fica doido quando os projeccionistas se enganam e usam o "cinemascope" num filme com outro formato, e também detesta o ruído de pipocas nos novos multiplex. Personificação do cavalheiro afável e vagamente distraído, custa a crer que um dia destes, numa sala de cinema, tenha dado uma sonora chapada num rapaz que insistia em não se calar enquanto o filme corria no ecrã. "Para ver os extremos de violência a que pode chegar um cinéfilo!", diz, como se fora um dr. Jekyll a lamentar os desmandos de mr. Hyde.
Godard e Godzilla
David Teles Pereira tem pena de o horário de trabalho já não lhe permitir frequentar a Cinemateca, onde viu "ciclos de Murnau, Bresson, Godard, Truffaut ou Tarkovsky", e lamenta o fim de programas como o "Cinco Noites, Cinco Filmes", da RTP-2, onde, recorda com nostalgia, "passaram durante uma semana inteira filmes sobre o Godzilla, japoneses e americanos". Hoje passa a vida a consultar a Internet e a folhear catálogos para descobrir mais uma pérola para a sua "colecção privada de filmes de terror e filmes 'exploitation'", uma busca que às vezes o obriga, quando não existe edição em DVD, a recorrer à pirataria na internet.
Se ouvir João Félix é viajar no passado, ouvir David Pereira é entrever um futuro em que "A Palavra", de Dreyer, ou "O Mundo a Seus Pés", de Orson Welles, poderão ter a mesma cotação no mercado cinéfilo de um filme de serial-killers no estilo "giallo" de Dario Argento, ou de um "Cannibal Killers", de Paul Naschy - nome artístico do espanhol Jacinto Molina -, protagonizado por um bandido free-lancer que é contratado pelos Yakuza e que se refugia na casa de uma família de canibais que cria porcos. Poeta e co-responsável por uma revista literária, David Pereira reconhece não ser, enquanto leitor, o equivalente do que é como cinéfilo, quer na facilidade com que, no cinema, assume o seu ecletismo de gosto, quer no próprio consumo de objectos que o cânone oficial menoriza. "O equivalente a um Spielberg ou um Coppola na literatura", diz, "seria o best-seller com alguma qualidade, que eu, realmente, não consumo".
Para lá da diversidade óbvia dos percursos, uma distinção relevante entre velhos e novos cinéfilos é que os primeiros desdenham as obras de culto dos segundos, mas o inverso não é necessariamente verdade. Félix admira a subtileza de Lubitsch, ou "aqueles movimentos de câmara extraordinários de Max Ophüls, que parece que se colam às personagens". E reconhece ser raro ver um filme recente que lhe encha as medidas. "O que hoje sinto é que muitos filmes presumem que o espectador é burro, que tudo tem de ser dito e mostrado, quando o grande segredo do cinema está nisso a que se convencionou chamar elipse."
Foi Vasco Menezes, ex-crítico de cinema do PÚBLICO, que gere uma loja de DVD's alternativos - a Cinecittà -, quem nos sugeriu que valeria a pena falar com David Teles Pereira. Era alguém que, explicou, tanto lhe comprava um Paul Naschy como um... Max Ophüls. A experiência na loja permitiu-lhe conhecer bem os circuitos da nova cinefilia. E confirma que os seus jovens clientes têm um gosto eclético: "Tanto levam Nouvelle Vague como filmes série B, e se compram filmes em DVD e pirateiam na Internet, muitos deles também frequentam a Cinemateca."
Nos limites do que a sobrevivência comercial permite, Menezes não resiste a impimir o seu gosto pessoal no estabelecimento. Educado "na televisão e nos clubes de vídeo, onde tanto se encontrava um James Bond como um Fellini", dá-lhe gozo promover misturas inesperadas, mas não arbitrárias. "Gosto de juntar o Russ Meyer ao Eisenstein, o Godard ao cinema de Hong Kong, o filme de capa-e-espada ao de samurais." Acha que não tem de haver "um gosto oficial" e que, ao lado da história canónica do cinema, corre "uma história paralela, dos filmes de série B, que também tem o seu próprio 'star system', as suas figuras míticas". Dá um exemplo. "Se me falam de actores cómicos e referem o Buster Keaton, apetece-me logo juntar ao grupo o Bruce Campbell, dos filmes "Evil Dead".
Vê a história do cinema como um contínuo cheio de regressos, citações e homenagens, e é isso que o fascina. "Perceber que o primeiro filme do Wes Craven é uma versão 'rape and revenge' [violação e vingança] de 'A Fonte da Virgem'", de Bergman". "O que descobri ao longo dos anos é que está tudo interligado", diz. "Um realizador como o Walter Hill fez o "The Driver" [1978], que é uma homenagem ao [Jean-Pierre] Melville e ao cinema de gangsters americano de série B, que por sua vez inspiraram a Nouvelle Vague francesa, e podíamos acrescentar o John Woo, que pega outra vez no Melville, ainda em Hong Kong, e depois os americanos pegam no Woo e até o levam para os Estados Unidos..." Admirador de cineastas da geração dos "movie brats", e em particular de John Landis e Joe Dante, "conhecedores enciclopédicos" de cinema, mas também do clássico Fritz Lang ou dos mestres italianos do terror e do macabro Dario Argento e Mario Bava, Vasco Menezes escolheria, enquanto filme determinante para o seu "crescimento como cinéfilo", "Cães Danados", de Quentin Tarantino. "Fiquei siderado."
O cinéfilo-programador
Tarantino, diz Mexia, "é o exemplo máximo dessa cultura popular regurgitada". No seu caso, o "click" que permitiu o salto para a cinefilia veio com "as primeiras coisas do Godard, como "À Bout de Souffle", quando percebeu que "há cinemas muito diferentes". Ainda hoje pensa que essa consciência é uma das marcas que define o cinéfilo. "Os que não são cinéfilos têm pouca noção disto; vêem um filme de que não gostam e dizem: 'Isto não é cinema'."
O subdirector da Cinemateca acha que "tudo mudou quando a cinefilia se libertou da sala de cinema", porque "as pessoas têm agora acesso aos filmes através do DVD e da Internet e cada um pode ser o seu próprio programador". Embora tenda a concordar com Félix na convicção de que "a experiência da sala é mais ou menos insubstituível", acha que "é melhor ver filmes em DVD do que não os ver".
Não o convencem os pessimistas que acham que as possibilidades tecnológicas hoje disponíveis na produção de filmes, e as mudanças nos hábitos dos consumidores, ditarão, em breve, a morte do cinema. "Mais depressa morrem os jornais nos quais se escreve sobre a morte do cinema." Acredita, sim, que o digital será uma transformação radical, mas lembra que esta é uma arte que já viveu a passagem do mudo ao sonoro, e que "hoje não temos bem a noção do que isto implicou para toda a indústria do cinema".
Tal como o cinema, a cinefilia também muda. Na introdução que escreveu para o dicionário de Kamp e Levi, Mexia diz mesmo que "cinéfilo" é uma palavra que "caiu em desuso" e que "sugere um mundo outrora novo e admirável mas que entretanto se tornou museológico". Naqueles que hoje poderiam corresponder ao conceito, observa "uma grande tribalização de gosto, pessoas que vêem cinema asiático e só vêem aquilo, gente que muito erudita e que sabe tudo sobre o seu cantinho, mas que se calhar nunca viu um Antonioni". No passado recente, acrescenta, "um cinéfilo tinha de ter visto os russos, o expressionismo alemão, o cinema clássico norte-americano, o novo cinema europeu - hoje, isto que era o be-á-bá já não integra o currículo obrigatório."
A cinefilia passou também a ser uma actividade de caçador solitário. David Pereira devora as suas presas em casa, sozinho, sem ninguém ao lado com quem discutir os filmes, embora mantenha algum diálogo virtual, através da Internet, com outros jovens cinéfilos de gostos afins. Nada de parecido com o que conta João Félix, que, aos 15 ou 16 anos, ia ver os filmes de Bergman com amigos, e que depois passava horas a discuti-los, dando voltas intermináveis a um jardim público.
O regresso às salas
Sensivelmente da mesma idade que David Pereira, Guilherme Blanc, promotor de projectos de cineclubismo universitário e um dos subscritores do abaixo-assinado que, recentemente, veio exigir a criação de um pólo da Cinemateca no Porto, coloca várias reservas a este retrato do novo cinéfilo como um comprador compulsivo de DVD, de gostos ecléticos, que trocou a sala pelo sofá. "Os DVD são objectos de luxo para uma pessoas que ainda está a estudar, e não posso adquirir os suficientes para alimentar a minha cinefilia", diz. E, "por razões tecnológicas", também não pirateia na Internet, embora reconheça, por regra, a sua geração "adquire cultura cinematográfica através do acesso a formatos ilegais". Do que gosta mesmo é de ver cinema em salas, e está convencido de que assistiremos ao regresso das salas independentes. Esse é, aliás, o tema da tese de mestrado que está a fazer em Londres. "Acho que vai haver um retorno à exibição clássica e que a tendência não é para a expansão dos multiplex, mas também não será um regresso ao modelo falhado da sala independente." Acredita que a solução passa não apenas por assegurar o conforto que as velhas salas não tinham, e por recuperar espaços de socialização que tinham, mas também por levar cineastas e actores às salas e por promover apresentações e debates. Não tendo meios para comprar os DVD que quer, e vivendo no Porto, onde "são escassas as oportunidades para se ver cinema realizado em décadas passadas, mas também cinema independente contemporâneo", descreve a sua cinefilia como "um amor platónico, impossível", mas acha que essa "dificuldade de consumação contribui para o exacerbar".
Blanc gosta da Nouvelle Vague, do expressionismo alemão e do neo-realismo italiano, mas não se entusiasma menos com filmes recentes, como "O Segredo de Um Couscous", de Kechiche, ou "A Turma", de Laurence Cantet. E acrescenta ainda às suas afinidades electivas realizadores como o norte-americano Wes Anderson ou o britânico Steve McQueen, autor de "Hunger", sobre a greve de fome de Bobby Sands. Também aprecia a primeira fase do holandês Paul Verhoeven, talvez a predilecção mais eclética num jovem cinéfilo que acha que as obras de Tarantino ou David Fincher "não justificam a aclamação com que têm sido recebidas". Sabe que "passa por maluco", porque "é a mesma coisa que, nos anos 60, alguém dizer que não gosta de Godard", mas defende que Tarantino é o exemplo de "um cinema que se mascara de arte alternativa, mas que tem uma gigantesca capacidade comercial, baseada numa percepção muito aguda dos gostos das novas gerações".
Guilherme Blanc reconhece que os DVD, a Internet, o acesso rápido a obras e a textos críticos, "tornam tudo mais simples a quem já é cinéfilo". Mas lembra que hoje não se vêem cartazes de cinema na rua e que houve "um grande retrocesso na exibição", o que o leva a colocar uma outra pergunta: "Não será hoje, afinal, mais difícil dar esse salto que transforma alguém num verdadeiro cinéfilo?"
Luís Miguel Queirós (PÚBLICO)
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