Cidade de Deus, Fernando Meirelles
I.
Deixo a mira incerta desta pistola
soprar balas entre os deslizes húmidos
das horas, golpes de tinta azul e os passos em volta
de um cinzeiro, rotunda imensa para
a ébria verve destas palavras que em vão
tentamos esconder da morte.
Amanhã já terão sido desviadas pelo bom senso
– essa mão suspeita –, nem as virgulas
terão o mesmo impacto,
mas por agora pouco importa,
sejamos ridículos, digo eu.
Vamos enquanto é madrugada, vamos por trás
de uns óculos de sol e com o capuz sobre a cabeça,
numa deambulação rente às coisas, riscando carros
de alta cilindrada, mijando a fachada dos edifícios
e anotando com latas de spray
a desilusão desta arquitectura.
As minhas pedras acerto-as
na montra das lojas, das agências bancárias,
no rosa choque dos painéis publicitários
e de todo este vazio importado.
Não quero mais nada. E tu, diz-me,
quais são os alvos das tuas pedras?
II.
O sentido da vida nunca jogou
à apanhada connosco, nem sequer à bola.
Nunca nos fintou no meio campo
nem nos fez uma rata ou marcou um golo
de cabeça. Não passa de uma estratégia
sórdida, franchising de dias e semanas
a coçar os colhões do medo.
Outra promoção pague um leve dois
para vender de atacado corações de pechisbeque,
fabricados em taiwan e traficados pela américa
com código de barras e garantia de dois anos.
III.
Longe ainda deste tipo de ciladas
há as pedras loucas no peito e nos bolsos
dos putos lá em baixo, capitães do asfalto
que entretêm as ruas dos nossos poemas.
Interrompem o trânsito e restabelecem ao mundo
uma certa ordem – a infância vem primeiro.
Chutam a bola em todas as direcções,
até que fure ou saia disparada bem alto
ficando retida nalgum telhado ou entrando veloz,
estilhaçando a janela de alguém.
E enquanto os pais não tiverem dinheiro
para os trancar distraídos em casa,
no pátio mandam eles. Pequenos vândalos
a pisarem-te as flores, a apedrejarem-te os candeeiros
e a mergulharem-te mais fundo nas tuas noites,
na angústia órfã desses versos levados pela orelha,
fechados de castigo nesse quarto
ou chorando depois de uma boa tareia.
Diogo Vaz Pinto
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